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Ilustração de Augustus Burnham Shute numa edição de 1892. |
Moby Dick (1851), ou The Whale, é um dos grandes clássicos da literatura mundial, talvez o maior clássico da literatura americana. Muitas pessoas, mesmo que nunca tenham lido de fato o livro, reconhecem o nome e sabem que se trata de uma baleia e um capitão de navio obcecado por ela.
A influência desta obra vai além das histórias de pirata e alcança outros gêneros, como o terror. Pode-se dizer que está em Moby Dick a origem dos filmes de tubarão, um tipo de conteúdo que se tornou praticamente um subgênero à parte, tendo início no famosíssimo Jaws (1975), do Spielberg, e alcançando até paródias como a produtiva franquia Sharknado.
Tanto nas histórias de tubarão quanto no livro de Herman Melville, temos uma demonstração da força assustadora e imbatível da natureza, representada no mais desafiador ambiente do planeta: o oceano com suas poderosas criaturas.
Ao simplesmente colocar os pés na água, ao entrar em um barco ou navio, o ser humano já está assumindo a posição de presa. No mar há criaturas que podem caçá-lo implacavelmente. A tripulação do Pequod era composta de caçadores; Ahab era um caçador; Moby Dick, porém, ensinou a ele uma lição, mostrando que na verdade eles eram a presa.
O livro é uma longa e bem detalhista história de pescador, narrada pelo marujo Ismael. Mas não é coisa de pescadores comuns e sim caçadores de baleias, os tipos mais ousados e aventureiros, pescadores que iam até os confins do oceano enfrentar as maiores criaturas que existem no planeta.
O narrador não tem pressa em chegar no tema da história. Ele começa escrevendo um verdadeiro prólogo sobre a baleia, descrevendo-a como uma criatura mitológica, citando vários autores antigos e modernos, definições em dicionários, etimologia e a relação entre a baleia e o monstro bíblico Leviatã.
“Whale [baleia]. […] Sueco e dinamarquês, hval. Esse animal recebe tal nome em função de seu corpo roliço ou do ato de rolar; pois, em dinamarquês, hvalt significa arqueado ou abobadado.”
Ismael versus Queequeg
Então na primeira parte de sua narração Ismael se dedica a contar sobre o início de sua amizade com um pitoresco colega de profissão: o canibal Queequeg. Queequeg vem de uma tribo de canibais em uma ilha fictícia do Pacífico Sul, tem o corpo todo tatuado e pratica uma exótica religião animista, além disso é um excelente caçador de baleias, com uma mira impecável no arremesso do arpão.
Cerca de 20% do livro, mais de 100 páginas, são dedicados aos primeiros dias de coleguismo desta dupla, Ismael e Queequeg. Depois do susto inicial ao encontrar um sujeito tão exótico e de aparência ameaçadora, Ismael logo desenvolveu um afeto por Queequeg, que descreve com certo tom de humor, principalmente ao mencionar que ambos dormiam juntos. Alguns poderiam até dizer que há uma certa tensão homoafetiva entre os dois. Não descarto esta possibilidade, mas provavelmente ele apenas estava brincando a respeito, sem contar que o contato físico de ambos tinha um limite e não há qualquer insinuação de que ambos tiveram algum tipo de contato sexual.
"Ele parecia se interessar por mim de forma tão natural e espontânea quanto eu por ele; e, quando acabamos de fumar, ele encostou a testa na minha, me agarrou pela cintura e disse que dali em diante estávamos casados; querendo dizer, no fraseado de seu país, que éramos amigos do peito; ele ficaria feliz de morrer por mim, caso fosse necessário (...) Não sei por que é assim; mas não há lugar como uma cama para confidências reveladoras entre amigos. Marido e mulher, dizem, ali abrem inteiramente suas almas um para o outro; e alguns velhos casais costumam deitar e conversar sobre os velhos tempos até quase o amanhecer. E assim, na lua de mel de nossos corações, ficamos deitados eu e Queequeg — uma dupla aconchegante e amorosa (...) Ficamos deitados assim na cama, conversando um pouco e depois cochilando um pouco, e Queequeg de vez em quando afetuosamente colocava sua perna morena tatuada sobre a minha e depois a retirava dali, de tão à vontade e sem cerimônia que nos sentíamos (...) Tendo terminado sua história quando dava a última baforada no cachimbo que ia se apagando, Queequeg me abraçou, colocou sua testa contra a minha, e apagando a luz, deitamos nos afastando um do outro, cada um para um lado, e muito em breve estávamos dormindo."
O destino daqueles dois homens começaria a ser traçado. Queequeg adorava um pequeno ídolo de madeira chamado Yojo e acreditava que era da vontade de Yojo que Ismael escolhesse o navio em que eles iriam embarcar. Havia três navios no porto: Barragem do Diabo, Delícia e Pequod. Ismael escolheu o Pequod, mal sabendo o que o futuro tinha reservado para eles com esta escolha.
Eles conhecem os dois capitães auxiliares do navio, Bildad e Peleg, argumentando com eles em busca de uma vaga. Ismael é contratado depois de uma entrevista, mas os capitães hesitam ao ver o selvagem Queequeg. Queequeg, porém, é um homem de ação e não de palavras. Ele arremessa seu arpão em uma mancha a certa distância, provando sua habilidade. Bastou este gesto para ser contratado.
"Capitão, vendo gota pequena piche na água lá? Vendo? Bom, imagina olho baleia, bom, então! — E, mirando bem, atirou o ferro por cima do chapéu de aba larga do velho Bildad, passando pelo convés e acertando o ponto brilhante de piche fora do campo de visão. — Agora — continuou Queequeg, tranquilamente puxando o cabo —, imagina aquilo olho baleia; ora, baleia morta."
Até então já estamos em 1/4 do volume do livro e nada de conhecermos o principal personagem, o misterioso capitão Ahab. Ele é apenas mencionado em conversas, tendo esta aura mítica em volta dele. Ismael até se depara com um profeta, ou louco, maltrapilho no porto, que de maneira enigmática dá a entender que Ahab é um ser perigoso e que poderá trazer a ruína naquela viagem.
Rebeldia versus tirania
Moby Dick pode simbolizar muitas coisas: uma ambição impossível, uma vingança que deu errado, o grande desafio da sua vida, sua relação com um nêmesis, o eterno embate entre a humanidade e as forças implacáveis da natureza, um líder fanático que leva seus seguidores à ruína, até mesmo uma mensagem ecológica do tipo "deixe a natureza em paz".
Eu acrescentaria ainda outra alegoria. A baleia, constantemente chamada de leviatã em Moby Dick, também pode representar o estado ou qualquer poder estabelecido. De fato, entre as várias citações sobre baleias no início do livro, há também um trecho do Leviatã de Thomas Hobbes.
Na ficção, piratas e navegantes em geral são uma boa ilustração de uma vida anárquica, pessoas vivendo em regiões onde o estado não chega, o alto mar. O pirata é o anarquista primordial. A mão do estado e da lei não o alcança enquanto ele está longe do continente, vivendo em seu próprio país isolado, o navio.
Em Moby Dick, porém, vemos que não há nada de perfeito e feliz nisto. Ahab é o inimigo do estado, do leviatã, mas ele acaba constituindo sua própria autocracia, seu governo tirano dentro do navio e que leva a tripulação à ruína. Olhando desta maneira, podemos chegar à pessimista conclusão de que uma sociedade livre do estado é uma utopia (e utopia, pela própria definição da palavra, significa um lugar que não existe, algo impossível).
O poder não aceita vácuo. Se não existe um poder estabelecido, como o estado, outro irá se desenvolver: corporações, máfias, gangues, tiranetes, gurus, seitas, milícias... Não tem jeito, pois a maldade humana precede qualquer instituição. De um lado temos o leviatã, de outro tiranos loucos como Ahab.
Como escapar deste impasse? Não sei. Talvez ninguém saiba ainda. É parte da nossa aventura humana descobrir e evoluir.
A trama principal versus a apreciação da arte baleeira
Uma das características de um clássico é sua capacidade de falar com diversas gerações e abordar temas universais. É o caso de Moby Dick. A história abre espaço para diversas interpretações em termos de mensagem. Podemos ver o fanatismo político e religioso ilustrado na devoção da tripulação do navio ao seu capitão; podemos aprender sobre o perigo da obsessão, de se buscar um objetivo inalcançável ou muito arriscado, como uma febre do ouro que resulta em tragédia; podemos pensar sobre o desejo de vingança e como ele pode envenenar a alma e arruinar a vida.
Curiosamente, a história de Ahab e a baleia consiste na menor porção do livro. Em suas 800 e tantas páginas, Moby Dick dedica um volumoso espaço a descrever a vida de marinheiro, os detalhes da embarcação, da arte da pesca, da anatomia e comportamento das baleias em geral. É um verdadeiro tratado sobre a caça às baleias. O autor do livro mostra-se mais fascinado por isto do que pela trama principal.
A caça a Moby Dick, diante de todo o escopo da obra, parece apenas uma nota ou uma história de fundo, enquanto a verdadeira história principal, aquilo a que o autor dedicou mais tempo e paixão, é a pura e simples atividade baleeira.
Ahab versus Boomer
No capítulo 100, Ahab encontra o navio inglês Samuel Enderby e tem uma conversa sobre Moby Dick com seu capitão Boomer. Enquanto Ahab teve uma perna arrancada pela baleia, Boomer teve um braço. Este capitão se mostra um interessante contraste, pois Ahab nutria um monomaníaco sentimento de ódio e vingança por Moby Dick, mas Boomer, que também foi vítima da baleia, não demonstrava o mesmo sentimento e encarava até com certo bom humor a mutilação que sofreu.
Quando Bunger, o cirurgião do navio inglês, sugere que Boomer vá atrás da baleia, este responde:
"Não, muito obrigado, Bunger... ela que fique com o braço que já tem, pois isso não tenho como evitar, e eu não a conhecia na época; mas deixe o outro braço aqui. Chega de baleias brancas para mim; fui atrás dela uma vez, e isso me bastou. Seria uma grande glória matá-la, sei disso; e o tanto de espermacete que há nela encheria um navio, mas, ouça, é melhor deixar essa baleia em paz".
Boomer aprendeu a lição e soube quando parar. Ele viu que há certos riscos que não valem a pena correr e que certas vinganças são inúteis. Ahab, por sua vez, nutria um sentimento oposto, tanto que respondeu: "Por vezes as coisas que mais deveríamos deixar em paz são as que mais nos atraem. Ela é um ímã!".
Aliás, seria interessante uma adaptação cinematográfica baseada na aventura de Boomer, um personagem que tem final feliz e que é sábio, aprendendo com os erros. Enquanto ele segue navegando com prudência e prosperando aos poucos, recebe notícias distantes sobre os tolos que tentaram enfrentar a baleia, como Ahab.
Cristianismo versus animismo
Ismael define-se como cristão presbiteriano e vez ou outra tece algumas reflexões teológicas. No início da aventura, descreve o sermão de um pastor e reflete sobre a simbologia do púlpito em si, vendo aquela plataforma de madeira como uma espécie de proa do navio da sociedade, do navio do mundo. Uma profunda reflexão sobre o papel da religião, especialmente do cristianismo, na civilização.
"Nem o próprio púlpito escapava de ter o mesmo sabor marítimo que marcava a escada e a pintura. Sua frente formada por painéis lembrava a proa íngreme de um navio, e a Bíblia Sagrada repousava sobre um ornamento que se projetava, imitando a ponta de um navio. O que poderia ter mais significado? — pois o púlpito é sempre a parte que vai à frente deste mundo; todo o resto vem atrás dele; o púlpito conduz o mundo. É dele que antes se avista a tempestade da ira divina, e a proa deve suportar o primeiro impacto. É dele que se invoca primeiro ao Deus das brisas boas ou más que envie ventos favoráveis. Sim, o mundo é um navio sempre partindo e nunca uma viagem completa; e o púlpito é sua proa."
Contrastando com a sua formação cristã, Ismael conhece o totalmente pagão Queequeg, um nativo polinésio que carrega um pequeno ídolo de madeira, causando uma crise de consciência em Ismael:
"Eu era um bom cristão, nascido e criado no seio da infalível Igreja Presbiteriana. Como poderia me unir a esse selvagem idólatra na adoração de seu pedaço de madeira?"
A convivência faz que Ismael torne-se mais tolerante com as crenças e comportamentos excêntricos do colega pagão. Além disso, em suas digressões ao longo da narração, também chega a tecer alguns pensamentos animistas. É interessante, por exemplo, como ele descreve a criação anímica de uma espécie de forma-pensamento, uma egrégora, a partir da vontade obsessiva de Ahab.
"Mas, como a mente não existe a menos que esteja ligada à alma, deve ter ocorrido, no caso de Ahab, que, quando ele entregou todos os seus pensamentos e fantasias a um único propósito supremo, esse propósito, por um hábito próprio e voluntário, tenha se arrebatado contra deuses e demônios, transformando-se numa espécie de ser autopresumido e independente. Mais do que isso, o propósito era capaz de viver e arder de maneira sinistra, enquanto a vitalidade comum à qual estava unido fugia horrorizada desse nascimento espontâneo e sem pai. Portanto, o espírito atormentado que brilhava nos olhos do corpo, quando o que parecia ser Ahab saía correndo de seu quarto, era apenas uma coisa vaga, um ser sonâmbulo e sem forma, um raio de luz viva, certamente, mas sem substância para colorir e, portanto, algo deixado em branco. Deus te ajude, velho homem, teus pensamentos criaram uma criatura em ti; e aquele cujo pensamento intenso faz dele um Prometeu; um abutre se alimenta daquele coração para sempre; e o abutre é a própria criatura que ele gera."
(03,09,2025)
Palavras-chave:
Augustus Burnham Shute, Herman Melville, Thomas Hobbes