Neollogia
Cogitações e quejandas quimeras 🧙‍♂️
.・゜゜・Omnia Mutantur ・゜゜・.

A arte de rejeitar os rudes

A ofensa em si não é nada. Palavras não são paus e pedras e não podem causar dano concreto. Enquanto o dano da pedra é inevitável, o dano da palavra depende apenas de quem a escuta, de como sua mente reage. Você pode treinar a mente para ignorar palavras, para relevar insultos, assumir uma atitude socrática e até mesmo debochar dos insultos que te oferecem.

O problema do insulto, portanto, não está nas palavras, mas na atitude, na intenção. Se alguém intencionalmente tenta te insultar, esta atitude revela a hostilidade da pessoa e o desejo dela causar algum tipo de dano. Ora, se uma pessoa tem sentimentos hostis a seu respeito, é melhor afastar-se dela, pois ela nada de bom tem a oferecer. 

É por isto que rejeito os rudes: não pelas suas palavras, mas pelas suas atitudes.

(26,09,2023)

Renascença

Olha o céu, olha o céu now.
Está se aproximando a aurora boreal.
Quantos se prepararam, quantos
Estão se protegendo com um manto.

Gafanhotos e ovelhas marchando.
Redemoinho humano. São tantos.
Algo vai acontecer, algo vai
Multiplicar-se e renascer após o caos.

Bye bye, balbuciante Babilônia.
Em breve teremos dois corações.
No céu veremos vinte mil vimanas
Que vêm visitar seus anfitriões.

Aguarde mais um pouco, paciência.
A espera acumula a recompensa.
O orvalho voltará renovando o cantil
Por entre as luzes do komorebi.

(28,09,2023)

Luto

Eu visto preto como quem está de luto.
De fato estou. Luto pela minha alma.
Essa tristeza que me acolhe como um leito,
Essa eterna noite negra que me abarca.

Talvez um dia este luto tenha fim.
Vou vestir branco, até mesmo um amarelo.
Sempre serei da Lua, da noite, do frio,
Mas contemplando o alvorecer pela janela.

(23,10,2023)

Estamos muito longe de criar a verdadeira matrix

Ano após ano ficamos fascinados com a evolução dos gráficos nos jogos. A cada novo jogo nos empolgamos com a ideia de sermos capazes de criar outro mundo, um mundo digital tão detalhista e realista quanto o teal. A tecnologia ray-tracing faz um jogo de luz impressionante e que dá a sensação de imersão e realidade. Todavia, a verdade é que estamos muito longe de replicar o mundo.

Estes gráficos que chamamos "realistas", simulam apenas uma camada muito superficial da realidade, apenas o aspecto visual em uma escala humana e de uma forma ainda bastante limitada. Tomemos um pequeno exemplo para perceber o abismo que separa o mundo digital que temos até o momento e o mundo real: uma folha.

Florestas nos games são um bom exemplo de quão impressionante pode ser uma simulação de mundo. A textura dos troncos de árvores, a luz interagindo com a vegetação, atravessando as folhas a ponto de simular um efeito komorebi, o chapinhar da água quando pisamos em um rio... Tudo parece tão detalhista. Mas olhemos apenas para uma folha, uma simples folha neste cenário. Se dermos um zoom, veremos alguns detalhes da folha, mas logo vamos nos deparar com pixels, pontos de cor. Aí acaba a profundidade daquele objeto.

Na vida real, ao olharmos uma folha mais de perto, vemos os intrincados detalhes de suas nervuras, as formas poligonais da superfície, minúsculos insetos a caminhar por ela. Em um zoom microscópico, veremos uma estrutura ainda mais complexa, as células, as moléculas, todo um mundo vivo existindo ali naquele pequeno espaço de uma folha. Outro zoom ainda mais profundo revelará os átomos presentes nas moléculas, um microuniverso composto por estes planetoides de prótons, elétrons e nêutrons. 

Se fosse possível olhar ainda mais a fundo, veríamos as partículas subatômicas mais fundamentais, o mundo quântico povoado por um enxame de ondas e partículas misteriosas. E talvez ainda haja uma camada mais profunda, a das cordas, vibrando de maneiras peculiares. Estamos falando aqui de algo tão pequeno e infinitesimal, que nossa imaginação mal consegue obter um parâmetro para comparar. Qual seria o tamanho de uma partícula subatômica em comparação à folha? Uma formiga no sistema solar? Ou na galáxia?

Uma folha, uma simples folha contém um mundo praticamente infinito. Não existe tecnologia computacional no mundo capaz de replicar isto em uma simulação. Ora, se sequer conseguimos criar uma folha tão profundamente detalhista, imagine quão longe ainda estamos de sermos capazes de replicar um mundo inteiro em uma simulação digital. Mesmo que a computação siga evoluindo exponencialmente, precisaremos ainda de séculos ou milênios até conseguirmos criar de fato um mundo virtual tão complexo quanto o real.

(31,10,2023)

Rebel Moon, o Jupiter Ascending do Zack Snyder

Rebel Moon (2023)

Depois do grande sucesso de Matrix (1999), muito se esperava da dupla Wachowski. Em 2012 lançaram Cloud Atlas, que tinha uma ousada proposta de roteiro entrelaçando várias linhas temporais. Era para ser algo grandioso e marcante. Não foi. Depois em 2015 veio Jupiter Ascending, novamente tentando oferecer um novo e fabuloso universo com o selo Wachowski de criatividade, mas acabou sendo um filme esquecível, o mais fraco da filmografia da dupla.

Vendo Rebel Moon, fiquei com esta mesma impressão. Havia uma expectativa de que esse seria o grande momento do Zack Snyder criar seu próprio universo fictício, um mundo realmente autoral e no qual ele imprimiria toda sua assinatura. Bom, de fato ele fez isto e até demais. Em Rebel Moon uma das assinaturas do diretor ficou exaustivamente enfatizada: o slow motion. É tanto slow motion que cansa e estraga o ritmo da ação.

Era para ser um filme de ação e aventura, pois a premissa envolve uma guerreira recrutando pessoas habilidosas para enfrentar um império do mal. E sim, a história toda é claramente uma homenagem a Star Wars, mesmo porque Zack Snyder originalmente escrevera o roteiro com o fim de ser uma história no universo Star Wars, mas o projeto foi engavetado (para não dizer "recusado" pela Lucasfilm) por anos e só agora o tio Snyder teve a oportunidade de retomá-lo.

No fim das contas trata-se de um filme morno e também insosso, já que não oferece uma ideia original e sim somente uma imitação homenagem a Star Wars.

(09,01,2024)

Palavras-chave:

Netflix, Zack Snyder

O mundo em que vivo

Eu não estou no mundo, aqui fora. Estou em mim, no universo interior, o lar onírico, o abrigo dos meus pensamentos. Aqui fora eu sou apenas um diplomata, um enviado para me representar, enquanto o meu eu completo vive em seu próprio ecossistema habitado por lembranças, fantasmas, fragmentos, reflexos e aspectos do meu ser. Neste mundo, nunca há sol de meio dia, nem mesmo o vespertino. Na maior parte do tempo é nublado, com uma leve neblina a gotejar, criando orvalho nas plantas, reluzindo entre a komorebi que atravessa a folhagem. À noite a chuva se intensifica e embala meu sono. É assim na capital, na cidade onde a mente reina, um mundo noir, misturando a penumbra e as cores do neon. Há, porém, outros biomas. O deserto do eremita, contendo dunas e cavernas nas rochas, um mundo próprio para o recolhimento, um mundo de fuga. À noite, o deserto é o melhor lugar para contemplar as estrelas. O bosque do mago, do druida, um bioma multicolorido e variegado, tomado pela imaginação e a loucura. Em algum lugar do bosque há um pântano e ali vive uma criatura. Há também campos floridos e árvores gigantescas e ancestrais, guardiãs de uma longa memória e portadoras do saber. O oceano é um mundo de forças primitivas, misteriosas, e nas suas profundezas encontra-se um abismo. No continente há montanhas e uns poucos vulcões que parecem já não estar ativos, tendo sua ira aplacada ou recolhida nas profundezas do ventre da terra. Há tanto a se explorar, tanto a se conhecer, mas quanto mais eu caminho, mais o horizonte se estica e reconfigura. E pensar que isto é apenas um fragmento, um fractal, do vasto campo quântico que consiste na consciência cósmica.

(02,11,2023) 

O conforto da tristeza

Muitos temem a tristeza, fogem dela, a rejeitam. Os masoquistas a procuram, porém como uma forma de punição. Alguns, no entanto, veem beleza na tristeza, a beleza incompreendida de uma flor alienígena. O seu frio é aconchegante, em sua penumbra noturna posso descansar os olhos. A tristeza para mim confunde-se com o relaxamento, um estado de calma como o da vigília antes do sono. Ela conserva minha energia e evita que eu me degrade com o calor das fortes emoções. Além disso, quem ama a tristeza nada teme. A alegria é sempre acompanhada do temor que algo ou alguém a roube ou a destrua. É um tesouro cobiçado. A tristeza, ao contrário, é um tesouro envolto em mistério e que muitos evitam e rejeitam. Ninguém vai querer roubar sua tristeza, ninguém vai invejá-la. Só não deixe que o mundo perceba que a tristeza é a sua paz, pois a paz, esta sim, todos querem roubar.

(13,11,2023)

No Man's Sky, Starfield, New World e Cyberpunk 2077, os 4 cavaleiros do apocalipse gamer

No Man's Sky (2016)

Existem alguns jogos que começam com o pé errado no lançamento, em grande parte por culpa da própria desenvolvedora e de um marketing errado. Um grande exemplo foi No Man's Sky em 2016. Este jogo fez tantas promessas não cumpridas, especialmente a promessa de um mundo multiplayer. Isto foi o que mais irritou a comunidade, pois todos estavam esperando se deparar com players voando e pousando por aí, o que daria uma imersiva sensação de vida naquele universo.

Além disto, o jogo tinha problemas de bugs e a geração procedural dos mundos não parecia ser suficiente para superar a sensação de repetitividade, de que a cada novo planeta você encontrava sempre as mesmas coisas. Com o tempo, porém, a Hello Games conseguiu se redimir.

Ao longo dos anos, novos updates foram polindo o No Man's Sky e acrescentando mais conteúdos, enriquecendo o jogo, além de inserir uma instância multiplayer. Assim, este jogo envelheceu como vinho, ficando cada vez melhor, de modo que hoje em dia sua comunidade está bastante satisfeita e No Man's Sky se tornou um dos mais elogiados jogos de exploração espacial, até mesmo um modelo para o gênero.

Starfield (2023)

É curioso ver como NMS, que a princípio enfrentou uma onda de hate, agora vem sendo usado como parâmetro de um bom jogo espacial. Agora em 2023 veio Starfield, novo jogo da Bethesda, e as comparações com NMS foram inevitáveis. Em vários aspectos o NMS se mostrou melhor, como no fato de se poder voar livremente pelos planetas com as naves e veículos terrestres, a riqueza dos biomas e a real sensação de mundo aberto, pois NMS tem pouquíssimas telas de loading, enquanto Starfield tem loading até para se entrar em uma sala dentro de um edifício.

A verdade é que Starfield não tem a mesma proposta de NMS. Não é um jogo focado em exploração espacial, mas em história e interação com os personagens. Quem, como eu, gosta de explorar mundos, não vai ter muito prazer em Starfield. Inclusive a capacidade de carregar loot é limitadíssima, algo bem irritante para jogadores dados à exploração. Eu quero sair catando e colecionando tudo o que encontro, mas não dá.

Starfield é para quem curte diálogos, a imersão no roleplay. Inclusive dá até para flertar com os personagens e estabelecer um relacionamento. É um jogo interessante para streamers justamente por causa deste roleplay.

Joguei pouco de Starfield, mas assisti a algumas horas de streaming, o suficiente para concluir que não é meu tipo de jogo. Todavia, acho que houve um hate exagerado da comunidade, pois o jogo está bonito, rico em detalhes e com uma história bem elaborada. De toda forma, assim como NMS, Starfield vai precisar de tempo para ser polido e acrescentar as features que a comunidade deseja. Não duvido que ele terá a mesma redenção que NMS teve.

New World (2021)

Outro caso de grande hype seguida de decepção foi o New World, um MMORPG que joguei por algumas centenas de horas e já escrevi muito sobre ele aqui. No mês de lançamento, ele chegou a bater 900 mil players diários. Os grandes streamers estavam todos jogando, havia aquele clima de empolgação com o retorno do gênero MMORPG. Parecia até que teríamos uma nova era de ouro dos MMOs.

Então vieram as decepções. New World foi lançado precocemente, veio mal polido, cheio de bugs irritantes e com um conteúdo limitado. Tornou-se uma piada interna do jogo falar que ele não tem montaria, um recurso básico na maioria dos MMOs, e também dos mobs que são muito parecidos em todo o mapa. Era mesmo entediante explorar o mapa e encontrar por toda parte sempre os mesmos modelos de criaturas - piratas, zumbis, fantasmas... 

A gota d'água porém foi um exploit que a comunidade considera imperdoável: a duplicação de itens. Players folgados começaram a se aproveitar deste bug, duplicando materiais, fazendo fortuna, manipulando o mercado, tendo uma injusta vantagem competitiva contra os demais. Somando todos estes problemas, o jogo perdeu 90% de seu público no primeiro semestre e nunca mais o recuperou.

New World tem tentado se redimir. Em 2023 os devs programaram todo um calendário de atualizações, incluindo a tão solicitada montaria. Aos pouco o jogo está melhorando, enriquecendo, mas parece que a confiança perdida não será restaurada tão fácil, pois o New World se fixou em certa quantidade de players (uns 15 ou 20 mil diários) e daí não saiu mais.

Cyberpunk 2077 (2020)

Além destes três, temos outro caso recente de jogo que foi uma grande hype-decepção: o Cyberpunk 2077.

Sendo produto da CD Projekt RED, aclamada desenvolvedora da série The Witcher, Cyberpunk era uma grande promessa, com a proposta grandiosa de trazer um mundo aberto cheio de vida, uma grande cidade repleta de NPCs e sem telas de loading, com edifícios, ruas e becos plenamente exploráveis. De fato, já no lançamento Night City era enorme e deslumbrante. Esta promessa foi mesmo entregue. O problema de Cyberpunk foi mais no polimento, pois o jogo veio extremamente bugado.

A grande decepção veio por causa disto, os bugs, crashes, a péssima otimização que deixava o jogo pesado até em computadores de última geração. A cidade era repleta de NPCs, mas muitos deles repetidos e se comportando de maneira tosca, fazendo a famosa T-pose. Cyberpunk 2077 virou motivo de piada.

Então se passaram dois anos e a cada patch o jogo foi ficando melhor. Veio o grande patch 1.0, depois o 2.0 e agora a expansão Phantom Liberty. Em seu estado atual, já pode-se dizer que Cyberpunk 2077 se redimiu. Finalmente o jogo mostra seu verdadeiro potencial, está polido, rico em conteúdo e também otimizado. 

Foram acrescentadas as tecnologias de ray tracing e DLSS que extraem o máximo de beleza dos gráficos. Pude constatar isto vendo algumas gameplays, pois para usufruir do máximo de beleza deste jogo é preciso ter um computador robusto. O comportamento da luz, refletindo nos carros, nos pisos de cerâmica, nas janelas, é realmente formidável.

Quanto a mim, jogo com uma modesta (para os padrões atuais) RTX 2060 Super. Ela atende aos requisitos mínimos e de fato consigo jogar com os gráficos no máximo, mas as configurações de ray tracing ficam no mínimo a fim de conseguir uns 45-50 FPS. Mesmo assim, no meu humilde PC o jogo está rodando liso e com gráficos decentes. Parece realmente otimizado.

Enfim, destes quatro jogos, dois já se redimiram totalmente, No Man's Sky e Cyberpunk 2077. Estes outrora cavaleiros do apocalipse tornaram-se anjos queridos pelo seu público gamer. New World está seguindo numa lenta jornada de redenção, aprimorando-se a cada update, enquanto o Starfield, o mais novo dos quatro, também vai precisar de uns bons anos para melhorar.

(06,02,2024)

Palavras-chave:

Amazon, Bethesda, CD Projekt RED, Hello Games, MMORPG

Métal Hurlant Chronicles, a tosca adaptação de um clássico dos quadrinhos

Métal Hurlant Chronicles (2012-2014)

Em 1974, a revista Métal Hurlant foi lançada pela editora indie francesa Les Humanoïdes Associés. Era uma antologia sci-fi e dark fantasy, cada título trazendo uma história diferente e com o diferencial de ter uma abordagem mais adulta, com nudez e violência explícita, incomum no gênero de quadrinhos da época. 

Ao longo das décadas, entre cancelamentos e retornos, a série contaria com nomes de peso, como Alejandro Jodorowsky, Milo Manara e Moebius. Nos EUA, estas histórias foram relançadas na revista Heavy Metal, que com o tempo passou a produzir seu próprio conteúdo.

As várias histórias da revista francesa e também da americana serviram de inspiração direta ou indireta para obras audiovisuais e eis que, por acaso vasculhando o catálogo do Amazon Prime, me deparei com uma adaptação tosquíssima, uma série de TV produzida pelo canal France 4 e intitulada Métal Hurlant Chronicles (2014-2014).

Essa série chama atenção pelo visual bem datado de efeitos especiais e ambientação futurista de baixo orçamento, com o bônus da atuação quase amadora dos atores que chega a parecer caricata. De toda forma, a série tem certo charme inexplicável.

(19,07,2025)

Palavras-chave:

Alejandro Jodorowsky, Amazon, France 4, Guillaume Lubrano, Les Humanoïdes Associés, Milo Manara, Moebius

Cannibal Holocaust, o ícone do found footage de terror

Cannibal Holocaust (1980)

Nas décadas de 70 e 80, o canibalismo já era uma grande tendência nos filmes de terror, especialmente no cinema italiano. Eis, porém, que o diretor italiano Ruggero Deodato e o roteirista Gianfranco Clerici, aproveitando essa moda, terminaram por criar uma obra que se tornaria um clássico e grande representante do gênero, Cannibal Holocaust (1980).

Mais ainda, o filme também se tornou o ícone do subgênero found footage, um formato de narrativa em que a história é contada por meio de gravações feitas pelos próprios personagens, o que dá um ar de documentário e veracidade à trama. Alguns filmes já haviam usado este recurso antes, como The Connection (1961) e Coming Apart (1969), mas foi o Holocausto Canibal que consagrou o estilo, principalmente por causa de seu tom chocante.

Cannibal Holocaust (1980)

A história de Holocausto Canibal envolve um grupo de jovens cineastas que, em busca de fama e sucesso, se aventuraram nas entranhas da Amazônia para gravar o documentário The Green Inferno. Eles são dados por desaparecidos, então o antropólogo Harold Monroe e uma equipe de resgate entram na selva em busca do grupo, encontrando apenas restos mortais e a câmera com as fitas gravadas. Este material é levado de volta para Nova Iorque e assim tem início o found footage, quando acompanhamos o que aconteceu na selva por meio dos takes da câmera.

O que se vê é que estes cineastas amadores não tinham nenhum escrúpulo e em vez de simplesmente agirem como expectadores do tal documentário, eles forjavam situações para gerar conteúdo chocante. Começaram por capturar uma grande tartaruga e matá-la diante das câmeras, eviscerando o bicho. 

Como se trata de um filme dos anos 80 de baixo orçamento, não tinha animatrônico nem qualquer tipo de efeito especial. Uma tartaruga de verdade foi realmente morta e esquartejada, enquanto se contorcia, resultando na cena mais chocante de todo o filme, uma vez que se trata de uma matança real.

Cannibal Holocaust (1980)

Depois um dos membros do grupo é picado por uma cobra e eles estupidamente resolvem amputar a perna do cara com um machete, o que não adiantou de nada, de modo que deixaram o colega morto e seguiram adiante.

Quando encontram uma tribo indígena, começam a tocar o terror, apavorando-os com armas de fogo e usando a intimidação para agrupá-los dentro de uma cabana, então ateiam fogo. Alguns índios conseguem escapar, mas boa parte da tribo morre nas chamas, enquanto o grupo invasor filma tudo como se fosse um show. Excitados com a matança, o casal do grupo ainda faz sexo ali mesmo.

Eles encontram uma das índias sobreviventes e a estupram por mera diversão, enquanto um dos homens aproveita para filmar tudo. Depois encontram a índia morta e empalada, aproveitando para filmá-la. Fica subentendido que eles próprios fizeram isso apenas para ter mais material chocante para o tal documentário. 

Cannibal Holocaust (1980)

Isso foi a gota d'água para a tribo que finalmente cria coragem para perseguir os estranhos invasores e um a um os membros do grupo vão sendo mortos e esquartejados. A mulher tem um destino ainda pior, sendo vítima de estupro coletivo e só então morta a pauladas.

Acompanhamos toda essa história pelos olhos do antropólogo que analisa as fitas com executivos de uma rede de TV que querem aproveitar o material e lançar o documentário, visto que algo tão chocante promete fazer muito sucesso. Todavia, o que veem é tão grotesco que desistem do projeto e resolvem queimar as fitas. Harold Monroe sai do edifício e pensa consigo mesmo: "I wonder who the real cannibals are".

Pois é, em Holocausto Canibal, os maiores monstros nem mesmo são os canibais nativos e sim o homem "civilizado", os cineastas sádicos e inescrupulosos que forjaram um massacre só para produzir um documentário chocante.

Cannibal Holocaust (1980)

Um detalhe curioso é que a música tema do filme, composta por Riz Ortolani (intitulada Cannibal Holocaust Main Theme), é bem doce e agradável e toca nos momentos mais grotescos, criando um efeito de contraste perturbador.

Mesmo que nos anos 80 a tolerância da sociedade com os filmes de terror fosse um pouco maior do que hoje em dia, Holocausto Canibal enfrentou várias reações negativas, processos por obscenidade, o filme foi proibido em vários países, teve fitas queimadas e as mortes reais de animais em cena, especialmente a tartaruga, também geraram revolta.

Na verdade o próprio diretor chegou a dizer que os atores assinaram um contrato se comprometendo a não fazer aparições públicas, assim induzindo as pessoas a acreditarem que eles foram de fato mortos. A cena da índia empalada também parece tão real e convincente que levantou suspeitas do filme ser um "snuff film", ou seja, uma obra que tira proveito de cenas reais de assassinato.

The Green Inferno (2013)

Em The Green Inferno (2013), Eli Roth faz uma homenagem ao clássico, mostrando um grupo de ingênuos ativistas ecológicos que inventam de adentrar a selva amazônica para filmar atividades criminosas de uma empresa petrolífera que está dizimando tribos locais.

Nessa aventura o grupo é capturado por indígenas e claro que eles são canibais, garantindo cenas de muito gore e gritos de agonia. Além da homenagem ao Cannibal Holocaust, Roth também faz referência a Moby Dick, provavelmente a obra literária americana mais citada e referenciada no cinema.

Moby Dick; The Green Inferno (2013)

É apenas um breve frame quando a protagonista e futura "final girl" da trama abre a gaveta e vemos que ela guarda um pingente dentro do livro. Neste frame temos ao mesmo tempo uma referência literária e a arma de Checkhov, pois esse pingente servirá para a protagonista fazer amizade com uma criança indígena que então irá ajudá-la na fuga do massacre.

Moby Dick não é trazida à toa. De fato, todo o desastre só acontece por causa do líder do grupo de ativistas, um homem de moral duvidosa e que manipula as pessoas inescrupulosamente. Fanático pela causa, ele não se importa em colocar todos em risco, de modo que sua ambição leva todos à ruína, assim como Ahab arruinou a tripulação do Pequod em sua caça obsessiva pela baleia branca.

Sky Ferreira; The Green Inferno (2013)
A cantora indie Sky Ferreira fez uma pontinha no filme.

Bom, apesar das homenagens e de toda a metalinguagem, The Green Inferno é um filme bem medíocre, com péssimas atuações e um roteiro fraco, mas de toda forma proporciona a "diversão" prometida para aqueles que curtem este subgênero de terror.

(17,07,2025)

Palavras-chave:

Carl Gabriel Yorke, Eli Roth, Francesca Ciardi, Gianfranco Clerici, Lorenza Izzo, Luca Barbareschi, Perry Pirkanen, Riz Ortolani, Robert Kerman, Ruggero Deodato, Sky Ferreira

Gris, um espetáculo de cores e beleza

Gris (2018)

A distribuidora Devolver Digital tem se mostrado de muito bom gosto na escolha dos títulos para seu catálogo e já acertou com vários indies interessantes, como Carrion, Reigns, Not a Hero e o divertidíssimo Broforce.

Em Gris (2018), do studio indie Nomada, a Devolver acerta mais uma vez na escolha e agora com um jogo delicado e dramático que se destaca principalmente pelo visual. Gris é uma verdadeira obra de arte, um espetáculo de cores e cenários que parecem pintados com aquarela.

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Explorando cenários surreais, a personagem representa a aventura de uma pessoa dentro de seu mundo interior, enfrentando as diversas fases de uma crise emocional. Seu nome, Gris, que é um tom cinza (mesma raiz da palavra "grisalho" e "grey"), representa o estado inicial da personagem, tomada pela apatia e vazio, quando o mundo parece todo cinza.

Ela vai redescobrindo as cores da vida em cada fase, então somos maravilhados com os cenários que vão ganhando cor à medida que avançamos. A isso se soma a agradável e dramática trilha sonora da banda Berlinist, criando uma experiência que na linguagem dos games costuma se chamar de "atmosférica". Você fica imerso nesse mundo surreal que alimenta a imaginação.

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

A mecânica com elementos metroidvania é bem minimalista e intuitiva, de modo que você não precisa se preocupar em aprender muitos comandos e pode se concentrar na imersão. Ao longo das fases você encontra uma enorme estátua feminina e vai ficando cada vez mais claro que se trata da própria alma da Gris. A estátua está toda rachada, em certo momento despedaçada, mas no fim ela consegue remontar os pedaços, o que significa que ela encontrou a auto aceitação.

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Esta história de fundo dá ao jogo uma camada extra de beleza. Trata da jornada da alma, da luta contra a depressão, o luto ou a crise existencial, ou até a transformação da puberdade para a maturidade. Tudo isto pode ser subentendido pela simbologia presente no jogo.

Este é definitivamente um dos mais belos jogos de todos os tempos.

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

Gris (2018)

(12,09,2020)

Palavras-chave:

Devolver Digital, Nomada Studio

Após a tempestade

Depois da tempestade
Não veio a bonança,
Pois agora só restam os destroços.
Se foi a pior parte
Mais trágica e intensa,
Agora  devo redobrar esforços,
Colher os meus pedaços.
Estou todo enxarcado,
Cansado e meu lar está inóspito.
Reconstruir a casa,
Será bem demorado.
O vento frio me corrói os ossos.
Mas durmo aconchegado
Em meus panos rasgados
E meus pensamentos esperançosos.

(13,07,2025)

À deusa Melancolia

Se a Melancolia fosse uma deusa,
Certamente eu seria seu devoto.
Ao seu altar eu levaria arroxeadas rosas
Em uma noite minguante com neblina e fria brisa.
Olharia as estrelas, deitado em uma rocha,
Até adormecer no aconchego do seu colo.
Ouviria em meus sonhos uma música tão triste
Que me faria sorrir satisfeito com seu ritmo,
Ela transformar-me-ia em um pássaro noturno
E eu deixaria a Terra, indo para outro mundo.
Veria coisas incríveis, cores, vidas tão diversas,
A evolução dos povos através de longas eras,
A riqueza do universo, abundante em beleza,
Tantas coisas formidáveis! E enfim encontraria
Tua fonte encantada, ó deusa Melancolia.

(19,11,2023)

A missão de sobreviver

A humanidade sempre especulou sobre seu papel, sua missão, sua razão e há muitas propostas na religião e na filosofia, mas o fato é que acima de tudo prevalece uma missão: sobreviver.

O melhor que podemos fazer neste universo é sobreviver, continuar, persistir por eras e eras para ver onde isso tudo vai dar. Talvez haja alguma grande resposta e ela está no futuro. Precisamos chegar lá, seguir sobrevivendo, enquanto nos entretemos com nossas especulações, nossas crises e soluções, nossas coisas triviais e fascinantes.

Como indivíduos somos efêmeros, somos fagulhas que se acendem e somem. Como humanidade, porém, podemos alcançar os confins do universo de alguma forma, algum dia.

(09,12,2023)

Efêmera alegria

Alegria, ela é tão efêmera.
Pequenos intervalos no respirar da vida.
O crepitar da chama, apenas um momento
Que nasce e se desfaz, como poeira ao vento.
Assim é a alegria, apenas a partícula,
O fragmento ínfimo, finito, fenecente.
Em ti eu não confio, efêmera alegria,
Não preenches a alma, és só uma gotícula.
Onde está minha vida, meu lar, meu habitat
É o imenso mar da minha mansa melancolia.

(21,12,2023)

Barbárie e civilização em Hannibal

Hannibal cooking (Mads Mikkelsen)

A barbárie e a civilização se diferenciam em aspectos éticos, morais, até mesmo tecnológicos. Há ainda outro aspecto que os diferencia: o estético. A barbárie é feia, grotesca. A civilização busca o que é bom e belo, parafraseando Platão.

Povos bárbaros matam sem se importar com a apresentação estética da morte. Desmembram corpos, esmagam crânios, expõem órgãos, espalham sangue por toda parte. O resultado é uma cena bastante desagradável aos olhos. Já em povos civilizados, há um esforço por reduzir a feiura da morte. A pena de morte por injeção letal é um bom exemplo. É uma morte elegante, limpa, como foi a morte de Sócrates ao beber veneno e deitar-se numa cama como quem vai simplesmente dormir.

Pois é, uma sociedade civilizada também mata, também se envolve em guerras, todavia, ela esforça-se em evitar o grotesco. 

No caso do personagem Hannibal, temos um curioso sincretismo entre barbárie e civilização. Ele se tornou Hannibal por causa de um biografema em sua infância, um trauma ao ser feito prisioneiro por criminosos de guerra que acabam canibalizando sua irmãzinha. Este trauma indelével instalou na psique do garoto uma semente de barbárie, o ódio e desejo de vingança e violência manifestado em sua disposição ao canibalismo.

Ele estava destinado a se tornar um monstro, consumido pela barbárie, até que conheceu a Sra. Murasaki que deu a ele um toque de civilização. Ela o ensinou a canalizar a raiva, substituindo o desejo grotesco de violência bruta pela refinada e elegante arte da luta com espada. Foi assim, inclusive, que o Japão feudal conseguiu superar a barbárie com a estética da civilização. Os samurais matavam, mas matavam seguindo as regras do bushido e a estética da arte marcial.

Além da arte marcial, Hannibal também aprendeu alta culinária e aí é que reside seu mais fino aspecto civilizado. De uma forma paradoxal e fascinante, ele vestiu seu instinto bárbaro de canibalismo com as finas roupas da culinária gourmet, cozinhando belos pratos com a carne de suas vítimas.

Na série Hannibal (2013-2015), este talento culinário do personagem foi melhor explorado e somos agraciados com várias cenas de belíssimos (e por que não dizer apetitosos) pratos. Este Hannibal da série, interpretado por Mads Mikkelsen, tem uma ênfase maior na questão estética, quase como se ele fosse uma espécie de artista, ainda que macabro. O Hannibal dos filmes, interpretado por Anthony Hopkins, é igualmente elegante e culto, mas tem alguns momentos em que passa do ponto, tornando-se grotesco.

Obviamente, Hannibal não tem uma ética civilizada. Sua ética é bárbara, ou melhor, de um nível mais arcaico de civilização, no nível do "olho por olho, dente por dente"; sua estética, porém, é de fato civilizada e um exemplo de que uma das coisas que diferenciam a barbárie da civilização é a beleza.

(19,03,2024)

Palavras-chave:

Anthony Hopkins, Mads Mikkelsen, Platão

Lamentações

Os meus problemas não são da conta de ninguém. 
Só cabe a mim carregar a minha cruz,
A pedra sisífica que todo mundo tem.
Eu tenho a minha, você a sua, pois.
Mas, como o forno fumegante de um trem,
Todos precisam liberar o seu vapor.
A poesia é o escape por meio da qual são
Poupados meus vapores da explosão.

(22,12,2023)

Sombra

Não preciso de inimigos, 
Pois já tenho a mim mesmo. 
Eu tenho a minha Sombra 
E a ela estou preso.
Ela que me conhece,
Meus erros e fraquezas;
Conhece as rachaduras,
Meus pontos indefesos.
Como dois condenados
Acorrentados, presos
Um ao outro para sempre,
Sem nunca ter sossego.
Ó, Sombra, todo dia
Acordo te ofereço.
Façamos uma trégua.
Me diz qual é o preço.
Vivamos em paz, Sombra,
Prometo que eu esqueço,
Perdoo teus pecados.
Busquemos recomeço.
Juntos seremos fortes,
Não partes, mas inteiros.

(25,12,2023)

A eterna Melancolia

Não sou um corpo, sou um cérebro. Meu cérebro possui um corpo, a sua carapaça, o seu veículo. Tudo no corpo existe em função do cérebro, uma máquina trabalhando para nutri-lo, para dar a ele as ferramentas motoras e sensoriais com as quais pode interagir com o mundo. 

Foram tantos anos para o cérebro chegar à sua forma atual. Tantas experimentações, tanta tentativa e erro; vidas e mais vidas nascendo, multiplicando-se, lutando, morrendo; um ciclo de milhões de eras até nos tornarmos o que somos, um fragmento da consciência do universo.

Por que então somos assim? Por que sorrimos e choramos? O que as emoções têm de importante no grande escopo da nossa jornada cósmica? Temos algo que as máquinas não têm, que talvez nunca terão, algo que parece um defeito, um bug em nosso software, ainda assim tão formidável.

Reafirmo meus votos com a Melancolia. Pairando entre as estrelas, contemplando a grande saga da existência, penso e sinto que há espaço para uma visão melancólica do mundo. A Melancolia é minha Perséfone.

Que tramas ela deve tecer na minha rede de neurônios? Que aspectos do mundo ela me permite enxergar? A luz da alegria nos cega para a realidade, enquanto a melancólica penumbra oferece uma melhor definição das formas, da luz, da sombra e da profundidade. 

A Melancolia me faz sentir saudades do universo. Olho bilhões de anos como uma fagulha que num momento foi acesa e logo desapareceu. O nascer e morrer de estrelas é como o infinitesimal vibrar das menores partículas na duração incalculável do infinito.

Sentirei saudades, universo, quando tudo passar. De fato, em minha imaginação que transcende as quatro dimensões, eu já vi o teu fim como o fim de um breve momento de alegria, permanecendo apenas a imutável e paciente melancolia cósmica.

(05,01,2024)

The Gray Man e a renascença dos filmes de ação

The Gray Man (2022)

O cinema de ação está mais vivo do que nunca. Depois de sua renascença, trazida pelo John Wick, cada vez mais tem surgido bons filmes de brucutu, com tiro e porradaria bem ao estilo anos 90, porém, em certos aspectos, eu diria que até melhor que os anos 90.

Podemos marcar o ano de 2014 como o renascimento do cinema de ação, não apenas por causa de John Wick, mas também de Capitão América 2. De um lado temos os Irmãos Russo e do outro o Chad Stahelski. São estes os grandes nomes desta nova era da ação.

Enquanto o Chad Stahelski tem se concentrado na sua cria favorita, a franquia John Wick, os Irmãos Russo fizeram carreira na Marvel e depois lançaram uma franquia própria, Extraction, que até o momento teve dois filmes (2020,2023).

Dito isto, temos The Gray Man (2022), também dos Russo. Na Marvel eles fizeram amizade com alguns atores que depois acabaram participando de outros projetos. É o caso do Chris Hemsworth, o Thor da Marvel, que se tornou o protagonista brucutu de Extraction; e em The Gray Man temos o Chris Evans, o Capitão América, que atua como o vilão da história.

É interessante ver como o Chris Evans, que encarnou o sério e bom moço Capitão, agora performa um vilão bem desprezível, um sádico com um jeitão infantil e um bigodinho. Ele consegue convencer no papel.

Temos também a Ana de Armas, que encarna uma agente badass e curiosamente sem qualquer traço de sensualidade, algo que os diretores costumam aproveitar nos filmes com ela. Tem também o Wagner Moura, que teve o privilégio de ficar pertinho da Ana de Armas. A caracterização dele ficou tão boa que durante o filme eu nem me dei conta que era ele.

A grande estrela, porém, é o Ryan Gosling, interpretando o misterioso agente Six. Convenhamos que é impossível fazer um filme com o Ryan Gosling sem que ele roube a cena. Ele conseguiu roubar a cena até no filme da Barbie, contrariando as expectativas do roteiro que tentou fazer do Ken um personagem desprezível. O carisma do ator fez todo mundo amar o Ken.

Julia Butters turkey sandwich

Ryan Gosling, que já fez romance, comédia, música, drama e sci-fi, agora encarna o puro brucutu e com um ar de Léon, pois ele é o assassino que se afeiçoa a uma garota e a protege como se fosse sua filha. Para quem sente que já viu esta atriz (Julia Butters) em algum lugar, ela foi aquela garotinha que contracenou com o DiCaprio em Once Upon a Time in... Hollywood (2019) e que no Oscar de 2020 mostrou que levava um sanduíche na bolsa, virando meme por um momento.

O filme é melhor do que eu esperava. Realmente capricha na ação e com uma característica bem peculiar dos Irmãos Russo que é não extrapolar na suspensão de descrença. É uma ação sem absurdos e os personagens são humanos de verdade, que sentem dor quando se machucam, ficam cansados e tal. Mesmo assim, o protagonista Six é um cara fora do comum, inventivo como o MacGyver e casca grossa como o Jason Bourne.

The Gray Man é a adaptação do romance homônimo de Mark Greaney, publicado em 2009.

(07,02,2024)

Palavras-chave:

Ana de Armas, Anthony Russo, Chad Stahelski, Chris Evans, Chris Hemsworth, Joe Russo, Julia Butters, Mark Greaney, Netflix, Ryan Gosling

O que vejo

Olhando para a escuridão estrelada, o que vejo? Uma floresta sombria? Sim, há uma floresta sombria lá fora, mas não só isso. Há também doces paraísos, o céu, o inferno e o limbo. O universo não é singular, mas plural.

Neste instante, quantos mundos estão em guerra? Quantos planetas foram aniquilados? Também em tantos outros a vida floresce e evolui. Há monstros e seres sublimes.

Olhando para a escuridão estrelada, eu vejo a vida, a consciência. Este infinito abismo cósmico também nos olha de volta. Lá do outro lado há olhos voltados em nossa direção. Alguns deles nem sabem que estamos aqui, mas ainda assim estamos todos comungando desta mesma mesa, a mesa da contemplação.

(10,01,2024)

Melancólicalegria

Desde a infância, eu sempre fui um tanto melancólico, inclusive conheci esta palavra muito cedo e à primeira vista me apeguei a ela. Na adolescência veio a depressão e a melancolia se intensificou, mesclou-se à tristeza, de modo que ambas se tornaram indistinguíveis. 

Foram necessários muitos anos, décadas, até que eu conseguisse separar a tristeza da melancolia. Finalmente encontrei a pureza deste sentimento e percebi como ele é confortável, é a cama em que repouso minha mente, é meu habitat, um constante estado mental que existe no limbo entre a tristeza e a contemplação.

Não quero, no entanto, desprezar a alegria. Como um alquimista, busco a fórmula ideal, a melhor combinação de elementos. Uma pitada de alegria é necessária, alguns efêmeros momentos de riso. Eis a fórmula de que sou feito: melancolia e zoeira, contemplação e besteirol. Melancólicalegria.

(11,01,2024)

Semeador

O semeador semeia universos
Como quem joga areia ao vento.
Cada universo é um grão
Perdido na imensidão,
Vagando a esmo no espaço e no tempo.

(11,01,2024)

Nostalgia e esperança

Por meio da nostalgia vivemos o que já aconteceu e por meio da esperança vivemos o que não aconteceu. A esperança é a nostalgia do futuro, é lembrar algo que ainda não veio, é ter saudades do amanhã. A nostalgia ampara-se no fato, no concreto, enquanto a esperança imagina, cria o que não existiu. Eis o que torna a esperança mais sublime que a nostalgia. Esta tem pés, aquela tem asas; uma extrai memórias da realidade, a outra molda a realidade. Assim vivo de nostalgia e esperança. Confesso, porém, que tenho mais apreço pela esperança, pois o ontem é o rascunho do amanhã e o que vivi é o carvão que queimo na chama da esperança.

(16,01,2024)

Mesmice, beleza e feiura

Vi um cozinheiro de rua com destreza fatiando frutas e verduras, preparando pratos com agilidade e arte, deixando a salivar os seus clientes. Era uma cena bela, pelo menos em partes. A dança de suas mãos e da faca, as fatias de frutas saltitando no ar, o prato adornado com as formas e cores da natureza. 

O contraste para toda esta beleza era o próprio cozinheiro, um homem sem o privilégio de bons atributos físicos; um homem feio, quase grotesco. Ninguém, todavia, se importava com sua feiura, uma vez que de suas mãos saia algo atraente. Ele dominava uma arte que agrada aos olhos e ao paladar.

A beleza existe em toda parte, como o lótus que cresce no lamaçal. Ela está misturada à feiura, destacando-se pelo contraste. Nada nem ninguém é totalmente belo. A beleza consiste em detalhes. Para apreciar a beleza, é preciso concentrar-se, separar o artista de sua arte. Afinal, mesmo monstros podem produzir beleza.

A beleza é rara, assim como a feiura. Ambas existem cercadas por um oceano de mesmice. Quando se encontram, mutualmente enfatizam-se. Quando concentram-se, na mesmice se diluem.

A imensa escuridão do abismo cósmico é a mesmice do universo, contrastada pela beleza das estrelas. O mundo é belo em seus detalhes, assim como a humanidade. Somos em parte mesmice, beleza e feiura. Cabe a cada um de nós calibrar o olhar a fim de escolher aquilo que prefere ver.

(18,01,2024)

Jonah Hex

Jonah Hex (2010)

Jonah Hex, embora pouco conhecido, é um personagem clássico da DC, criado em 1972. Já teve sua revista própria e vez ou outra aparece em histórias de outros personagens, animações, inclusive teve uma brevíssima aparição na série Legends of Tomorrow, ajudando a enriquecer o imenso universo de personagens do arrowverso.

Além de seu poder peculiar, o personagem obviamente se destaca no gênero western por causa de sua grotesca cicatriz no rosto. Diferente dos típicos cowboys galãs, Hex é o protagonista de western mais feio de todos os tempos.

Em 2010 ele teve finalmente seu próprio filme, um western com um toque de misticismo, já que o personagem possui o poder de comunicar-se com os mortos ao tocar em seus cadáveres. Foi interpretado por aquele que já estava escalado para um grande papel na Marvel, Josh Brolin, o inesquecível Thanos.

Megan Fox; Jonah Hex (2010)

Além dele, o filme também contou com um elenco bem conhecido, o John Malkovich, Michael Fassbender e até a Megan Fox no auge de sua beleza. Infelizmente, nada disso garantiu que o filme fosse algo além de mediano e amargasse um prejuízo. Com orçamento de 47 milhões, arrecadou apenas 11 milhões de bilheteria.

(03,07,2025)

Palavras-chave:

DC Comics, Jimmy Hayward, John Albano, John Malkovich, Josh Brolin, Legendary, Megan Fox, Michael Fassbender, Tony DeZuniga, Warner

The Sandman, uma adaptação morna e cara do clássico de Neil Gaiman

The Sandman (2022-2025)

Um dos fenômenos dos quadrinhos nos anos 90 foi o selo Vertigo da DC Comics. A proposta era produzir revistas com um teor mais sombrio, mais adulto e profundo. Sandman foi um dos grandes ícones desta safra de quadrinhos diferenciados.

Originalmente, Sandman foi um personagem escrito por Joe Simon e Michael Fleisher e desenhado por Jack Kirby e Ernie Chua lá nos anos 70. Depois de um hiato de duas décadas, ele foi revivido por Neil Gaiman em uma nova revista, com uma nova mitologia toda moldada pela criativa e psicodélica imaginação de Gaiman. De 1989 a 1996, a revista teve 75 edições e se tornou um clássico cult dos quadrinhos, com direito a outras minisséries, graphic novels e encadernados.

Era de se esperar que algum dia uma adaptação live action fosse produzida com base no Rei dos Sonhos e seu universo mítico e místico. Ainda nos anos 90, Roger Avary (que trabalhara com Tarantino em Pulp Fiction), foi cogitado para dirigir um filme do Sandman, mas o projeto não foi pra frente.

Desde o início o Neil Gaiman foi bastante cuidadoso e até ciumento com sua obra, monitorando de perto todos os possíveis projetos envolvendo a produção de um filme. Rejeitou roteiros e disse que "preferia não ver filme algum de Sandman do que ver um filme ruim de Sandman".

Projeto vem, projeto vai e Sandman nunca saiu do papel. Curiosamente, um dos personagens do seu universo, o Lúcifer, acabou se adiantando e ganhando uma série própria em 2016, inicialmente produzida pela Fox e que depois passou para as mãos da Netflix. 

Esta série durou bastante e acumulou quase 100 episódios, o que pode ser considerado um sucesso. Na prática, este Lúcifer, embora baseado nos quadrinhos, não tinha muita relação com Sandman e não faz qualquer menção a ele.

The Endless

Eis que agora em 2022, sete anos depois do lançamento de Lúcifer, o Sandman finalmente ganhou sua série, produzida pela Netflix. É uma série cara, diga-se de passagem, com um orçamento de cerca de 15 milhões de dólares por episódio. 

Para se ter uma ideia, a série The Witcher, que conta com Henry Cavill, muito CGI e toda uma ambientação medieval fantástica nos cenários e figurinos, custa em média 10 milhões por episódio. A julgar pela grana investida, The Sandman era pra ser uma série de fantasia triple A, um blockbuster, superprodução. O que vemos, porém, na tela, parece bem aquém do esperado.

Não que a série seja ruim. Em termos de roteiro, ela procura sem bem fiel em recontar as histórias da revista dos anos 90, a começar pela prisão de Sandman, por meio de um ritual desastrado de magia, e sua aventura para se libertar e recuperar suas relíquias, encontrando no caminho seus "parentes", os outros Perpétuos, como a Morte e Desejo.

Ok, está tudo lá. Como só houve uma temporada até agora, pouco foi abordado do vasto universo de Sandman. Ele também já encontrou Lúcifer, que nesta série passou por um gender swap, se tornando fêmea e sendo interpretada pela gigante Gwendoline Christie, a eterna Brienne de Game of Thrones.

Também temos uma breve aparição de Constantine, que igualmente passou por um gender swap. Na verdade, quem aparece na série é uma ancestral dele, Johanna Constantine, pois a Netflix não conseguiu os direitos de produção com o John Constantine em si.

Aliás, este é um dos problemas da série. Sendo um projeto da Netflix, ele acaba esbarrando em limitações legais, pois seria muito melhor que a série fosse produzida em casa, no caso, na Warner/HBO.

Death and Sandman; The Sandman (2022)

Em termos de caracterização, houve de fato muitas mudanças. Além dos casos já citados de Lúcifer e Constantine, a Morte teve um race swap, deixando de ser a garota gótica pálida dos anos 90 e se tornando uma garota negra, com um estilo menos gótico e mais casual. A Desespero, em vez de ser uma idosa acabada e mal encarada, virou uma garota com ar depressivo. 

O próprio Sandman lembra vagamente o personagem dos quadrinhos, mas não tiveram coragem de manter a aparência bizarra, meio grunge, do personagem original, com sua enorme cabeleira assanhada e corpo esquelético. O ator Tom Sturridge ficou apenas parecido com um gótico "padrãozinho".

Talvez o Perpétuo melhor caracterizado foi a Desejo, uma personagem andrógina nos quadrinhos e que foi interpretada pelo ator igualmente andrógeno (segundo ele, não-binário) Mason Alexander Park.

Adaptação, ainda mais em live action, é assim mesmo. Não se pode esperar que os atores sejam idênticos aos personagens. Alguns são parecidos, outros nem tanto e outros são bem diferentes. O que é realmente estranho no caso de The Sandman é que a série não parece ter uma qualidade digna de seu orçamento.

O CGI é pobre. A ambientação do inferno e do mundo do sonho, por exemplo, é bem genérica, pouco imersiva. Me pergunto onde é que gastaram estes 15 milhões por episódio, porque, além do fraco CGI, o elenco também não tem nenhum ator caro, nem mesmo o protagonista.

Enfim, o fato é que a série não conseguiu chegar à altura do Sandman. Tanto que as notícias após a semana de lançamento já deixam em dúvida se haverá uma segunda temporada, pois a Netflix parece hesitar em renovar, considerando a série muito cara. 

Como já falei, realmente o orçamento foi estranhamente caro, levando em conta a qualidade que foi entregue. A série não teve o desempenho e a qualidade dignos do investimento. O próprio Neil Gaiman se manifestou nas redes sociais com ar de preocupação sobre o risco da série não continuar, ao menos não na Netflix.

Neil Gaiman tweet

(28,08,2022)

Palavras-chave:

Allan Heinberg, DC Comics, Gwendoline Christie, Mason Alexander Park, Neil Gaiman, Netflix, Tom Sturridge

Cyberpunk e as frases feitas do Schwarza em The Running Man

The Running Man (1987)

O cyberpunk, que nada mais é do que um subgênero do sci-fi distópico, pode ter sua data de início atrelada ao lançamento do livro Neuromancer, em 1984. Obviamente ele já existia em sua forma embrionária décadas antes disto, mas é na década de 80 que o cyberpunk se estabelece.

Antes mesmo do Neuromancer, em 1982, o cinema já nos apresentou uma importante obra proto-cyberpunk, o Blade Runner, adaptação do livro Do Androids Dream of Electric Sheep?, de 1968. A trilogia Robocop (1987-1993) também forneceu uma grande contribuição estética na representação deste mundo futurista marcado pelo "high tech, low life". Por fim, em 1999, o cyberpunk chegou ao seu auge no cinema com The Matrix.

Além das obras-primas, o cyberpunk também enveredou por um caminho mais tosco, com uns filmes meio galhofa e roteiros sem pé nem cabeça. É o caso de The Running Man (1987), um filme que, apesar da tosqueira, merece um lugar na galeria dos grandes pais do cyberpunk no cinema.

Richard Dawson, Arnold Schwarzenegger; The Running Man (1987)

Trata-se de uma adaptação do livro homônimo publicado por Stephen King em 1982. A história se passa no que seria o futuro da humanidade em 2017, com os EUA se tornando um estado fortemente totalitário após o colapso da economia global. A fim de pacificar a população, é promovido um entretenimento televisivo ao estilo dos antigos gladiadores, onde criminosos literalmente têm de correr por suas vidas, fugindo de mercenários. Se no fim da caçada o sujeito sobreviver, até ganha o perdão de seus crimes e uma viagem para algum paraíso tropical.

The Running Man; Richard Bachman (Stephen King)

Arnold Schwarzenegger encarna o protagonista Ben Richards, um policial que se recusa a obedecer às ordens para chacinar uma multidão em protesto, de modo que não só perde seu cargo como é vítima de uma armação, sofrendo assassinato de reputação, sendo injustamente condenado, tornando-se um pária e fugitivo. 

É inclusive bem profético como Ben é criminalizado por meio de manipulação digital de imagens, forjando crimes que ele não cometeu. Sim, este filme de 1987 previu a tecnologia do deep fake.


Devido a seu físico e habilidades atléticas, Richards chama atenção de Damon Killian, o magnata da ICS Corporation, responsável pelo programa The Running Man. Killian consegue que Richards seja capturado e forçado a participar do reality show de sobrevivência, quando terá que enfrentar mercenários que são venerados pelo público como superstars.

O filme tem os elementos que acabariam se consagrando como uma marca de muitas histórias cyberpunk: o mundo decadente misturando alta tecnologia e baixas condições de vida para a maioria da população (high tech, low life); uma mescla quimérica entre o governo totalitário e megacorporações monopolistas; um tom satírico de crítica social, expondo o comportamento ridicularmente cruel das pessoas e instituições nesta sociedade; violência explícita e humor negro; uma certa estética futurista na forma como as pessoas se vestem, na ambientação cheia de neon contrastando com a escuridão noturna.

Cyberpunk 2077 (2020); The Running Man (1987)
Falando em estética, é curiosa a semelhança entre a apresentadora de TV no filme de 1987 e a outra do game Cyberpunk 2077, de 2020. 33 anos separam estas duas personagens. 

Curiosamente, boa parte destas características foi deixada de lado em Matrix, o filme que considero o mais influente representante do cyberpunk no cinema. Matrix abandonou a sátira, o humor negro, a estética exagerada e super colorida, assumindo um ar mais sério e até contemplativo, mais zen. De certa forma Matrix matou o cyberpunk zoeiro e os filmes que vieram depois, inspirados em Matrix, tentaram adotar um estilo igualmente sério.

Já no caso dos games, temos um renascimento desse cyberpunk oitentista, voltado para a sátira, o humor e a galhofa. É o caso da franquia Borderlands e outros jogos como High on Life (2022) e até mesmo Cyberpunk 2077 (2020) que, mesmo sendo no geral bem sério ao estilo Matrix, também tem seus momentos de humor negro, muito sarcasmo e diálogos cheios de palavrões e zoeira.

Mas voltando a The Running Man, existe um elemento peculiar que diferencia este filme de qualquer outra obra cyberpunk: o Arnold Schwarzenegger. Ele inevitavelmente acrescentou sua marca, seu ingrediente característico e que na verdade combinou com o estilo satírico do cyberpunk, pois ele fica a todo momento soltando suas frases de efeito, tirando onda com a morte dos adversários. Aliás, este é certamente um dos filmes em que o Schwarza solta a maior quantidade de frasismos e trocadilhos.

Alguns exemplos:

- "Uplink, underground! Uplink, underground! If you guys don't shut up, I'm gonna uplink your ass, and you'll be underground!"

- "Killian, here's your Subzero, now plain zero" (depois de matar o mercenário Subzero).

- "Aw, he had to split" (falando do mercenário Buzzsaw, depois que Richards o serrou ao meio com uma motosserra).

- "What a hothead" (depois que ele explode o mercenário Fireball).

E, claro, ele também mandou a sua clássica: "I'll be back".

(21,01,2024)

Palavras-chave:

Arnold Schwarzenegger, Paul Michael Glaser, Philip K. Dick, Stephen King, TriStar Pictures, William Gibson