Nas décadas de 70 e 80, o canibalismo já era uma grande tendência nos filmes de terror, especialmente no cinema italiano. Eis, porém, que o diretor italiano Ruggero Deodato e o roteirista Gianfranco Clerici, aproveitando essa moda, terminaram por criar uma obra que se tornaria um clássico e grande representante do gênero, Cannibal Holocaust (1980).
Mais ainda, o filme também se tornou o ícone do subgênero found footage, um formato de narrativa em que a história é contada por meio de gravações feitas pelos próprios personagens, o que dá um ar de documentário e veracidade à trama. Alguns filmes já haviam usado este recurso antes, como The Connection (1961) e Coming Apart (1969), mas foi o Holocausto Canibal que consagrou o estilo, principalmente por causa de seu tom chocante.
A história de Holocausto Canibal envolve um grupo de jovens cineastas que, em busca de fama e sucesso, se aventuraram nas entranhas da Amazônia para gravar o documentário The Green Inferno. Eles são dados por desaparecidos, então o antropólogo Harold Monroe e uma equipe de resgate entram na selva em busca do grupo, encontrando apenas restos mortais e a câmera com as fitas gravadas. Este material é levado de volta para Nova Iorque e assim tem início o found footage, quando acompanhamos o que aconteceu na selva por meio dos takes da câmera.
O que se vê é que estes cineastas amadores não tinham nenhum escrúpulo e em vez de simplesmente agirem como expectadores do tal documentário, eles forjavam situações para gerar conteúdo chocante. Começaram por capturar uma grande tartaruga e matá-la diante das câmeras, eviscerando o bicho.
Como se trata de um filme dos anos 80 de baixo orçamento, não tinha animatrônico nem qualquer tipo de efeito especial. Uma tartaruga de verdade foi realmente morta e esquartejada, enquanto se contorcia, resultando na cena mais chocante de todo o filme, uma vez que se trata de uma matança real.
Depois um dos membros do grupo é picado por uma cobra e eles estupidamente resolvem amputar a perna do cara com um machete, o que não adiantou de nada, de modo que deixaram o colega morto e seguiram adiante.
Quando encontram uma tribo indígena, começam a tocar o terror, apavorando-os com armas de fogo e usando a intimidação para agrupá-los dentro de uma cabana, então ateiam fogo. Alguns índios conseguem escapar, mas boa parte da tribo morre nas chamas, enquanto o grupo invasor filma tudo como se fosse um show. Excitados com a matança, o casal do grupo ainda faz sexo ali mesmo.
Eles encontram uma das índias sobreviventes e a estupram por mera diversão, enquanto um dos homens aproveita para filmar tudo. Depois encontram a índia morta e empalada, aproveitando para filmá-la. Fica subentendido que eles próprios fizeram isso apenas para ter mais material chocante para o tal documentário.
Isso foi a gota d'água para a tribo que finalmente cria coragem para perseguir os estranhos invasores e um a um os membros do grupo vão sendo mortos e esquartejados. A mulher tem um destino ainda pior, sendo vítima de estupro coletivo e só então morta a pauladas.
Acompanhamos toda essa história pelos olhos do antropólogo que analisa as fitas com executivos de uma rede de TV que querem aproveitar o material e lançar o documentário, visto que algo tão chocante promete fazer muito sucesso. Todavia, o que veem é tão grotesco que desistem do projeto e resolvem queimar as fitas. Harold Monroe sai do edifício e pensa consigo mesmo: "I wonder who the real cannibals are".
Pois é, em Holocausto Canibal, os maiores monstros nem mesmo são os canibais nativos e sim o homem "civilizado", os cineastas sádicos e inescrupulosos que forjaram um massacre só para produzir um documentário chocante.
Um detalhe curioso é que a música tema do filme, composta por Riz Ortolani (intitulada Cannibal Holocaust Main Theme), é bem doce e agradável e toca nos momentos mais grotescos, criando um efeito de contraste perturbador.
Mesmo que nos anos 80 a tolerância da sociedade com os filmes de terror fosse um pouco maior do que hoje em dia, Holocausto Canibal enfrentou várias reações negativas, processos por obscenidade, o filme foi proibido em vários países, teve fitas queimadas e as mortes reais de animais em cena, especialmente a tartaruga, também geraram revolta.
Na verdade o próprio diretor chegou a dizer que os atores assinaram um contrato se comprometendo a não fazer aparições públicas, assim induzindo as pessoas a acreditarem que eles foram de fato mortos. A cena da índia empalada também parece tão real e convincente que levantou suspeitas do filme ser um "snuff film", ou seja, uma obra que tira proveito de cenas reais de assassinato.
Em The Green Inferno (2013), Eli Roth faz uma homenagem ao clássico, mostrando um grupo de ingênuos ativistas ecológicos que inventam de adentrar a selva amazônica para filmar atividades criminosas de uma empresa petrolífera que está dizimando tribos locais.
Nessa aventura o grupo é capturado por indígenas e claro que eles são canibais, garantindo cenas de muito gore e gritos de agonia. Além da homenagem ao Cannibal Holocaust, Roth também faz referência a Moby Dick, provavelmente a obra literária americana mais citada e referenciada no cinema.
É apenas um breve frame quando a protagonista e futura "final girl" da trama abre a gaveta e vemos que ela guarda um pingente dentro do livro. Neste frame temos ao mesmo tempo uma referência literária e a arma de Checkhov, pois esse pingente servirá para a protagonista fazer amizade com uma criança indígena que então irá ajudá-la na fuga do massacre.
Moby Dick não é trazida à toa. De fato, todo o desastre só acontece por causa do líder do grupo de ativistas, um homem de moral duvidosa e que manipula as pessoas inescrupulosamente. Fanático pela causa, ele não se importa em colocar todos em risco, de modo que sua ambição leva todos à ruína, assim como Ahab arruinou a tripulação do Pequod em sua caça obsessiva pela baleia branca.
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A cantora indie Sky Ferreira fez uma pontinha no filme. |
Bom, apesar das homenagens e de toda a metalinguagem, The Green Inferno é um filme bem medíocre, com péssimas atuações e um roteiro fraco, mas de toda forma proporciona a "diversão" prometida para aqueles que curtem este subgênero de terror.
(17,07,2025)
Palavras-chave:
Carl Gabriel Yorke, Eli Roth, Francesca Ciardi, Gianfranco Clerici, Lorenza Izzo, Luca Barbareschi, Perry Pirkanen, Riz Ortolani, Robert Kerman, Ruggero Deodato, Sky Ferreira