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Barbárie versus civilização em A Guerra do Fogo

La Guerre du Feu (1981)

La Guerre du Feu (1981)

Em tempos remotos, o fogo era a maior maravilha a que a humanidade tinha acesso, era a tecnologia mais importante para a sobrevivência, garantindo aquecimento e proteção contra as feras. Em La Guerre du Feu (1981), acompanhamos a saga de humanos primitivos neste perpétuo esforço para literalmente manter a chama acesa.

Os protagonistas pertencem a uma tribo que sequer descobriu como produzir fogo (uma tribo fictícia chamada Ulam). Eles precisam manter uma fogueira acesa a todo tempo, e quando vão migrar para outra região precisam levar a chama em uma espécie de lampião feito de galhos e ossos. Quando por descuido ou acidente a chama se apaga, lá vão eles numa saga em busca de alguma fogueira de outra tribo a fim de roubar o fogo.

Assim, diversas tribos estão constantemente entrando em conflito, uma tentando roubar o fogo da outra. É a guerra do fogo.

É uma vida cheia de riscos constantes. Além do esforço para manter a chama e lidar com invasores, também há os perigos ambientais, o clima e as feras. A vida dos homens das cavernas não era mole não e raramente alguém chegava à velhice.

Rae Dawn Chong and Nicholas Kadi in La Guerre du Feu (1981)

O destino dos homens Ulam começa a mudar quando eles conhecem uma garota da tribo Ivaka. Ela se diferencia deles e dos demais bárbaros, pois não se veste com farrapos de pele de animais, mas anda praticamente nua, porém coberta com uma tintura que deve oferecer algum grau de proteção à pele. 

Ela também parece ter uma linguagem mais elaborada. Se expressa com muitas palavras, diferente dos homens brutos que, embora pronunciem algumas palavras primitivas, costumam se comunicar por grunhidos e sons simiescos.

Eles conhecem a aldeia da garota, e vemos como aquela tribo é mais evoluída. Em vez de viver nas cavernas, construíram cabanas, possuem diversos objetos confeccionados, ferramentas rústicas, cabaças de água, máscaras ornamentais, mas o que é mais fascinante é que eles conseguem produzir fogo.


O momento mágico do filme acontece quando o bruto da tribo Ulam observa estupefato um Ivaka manipulando uma broca, uma ferramenta primitiva que, por meio de constante fricção sobre madeira e palha, produz uma faísca e a partir dela o fogo. Com suas próprias mãos, um humano dá vida a esta entidade anímica e que até então parecia incontrolável.

Aí se nota o abismo tecnológico que havia entre os Ulam e os Ivaka. Enquanto aqueles passavam a vida lutando em busca do fogo, o seu bem mais raro e precioso, os Ivaka tratavam o fogo como algo trivial, já que facilmente podiam acender uma fogueira com as próprias mãos.

A história se passa há cerca de 80 mil anos e não pretende ser arqueologicamente acurada, pois no fim das contas é um conto fictício e não um documentário. De toda forma, é uma dramatização formidável dos tempos primitivos da espécie humana e que se tornou um merecido clássico do cinema.

A performance dos atores é um espetáculo à parte, já que o filme não tem diálogos na forma convencional. Eles se comunicam com linguagem corporal, grunhidos e, quando muito, com palavras estranhas. De fato, uma língua primitiva fictícia foi desenvolvida pelo novelista e linguista Anthony Burgess para uso dos personagens. Lembrando que Burgess também criou as gírias da linguagem Nadsat do filme Laranja Mecânica (1972).

Atlatl

O abismo tecnológico entre as tribos pode ser notado nos mínimos detalhes. Enquanto os Ulam só usavam paus como armas, os Ivaka já haviam desenvolvido uma espécie de precursor do arco, uma arma que hoje conhecemos como atlatl e consistia em uma base de madeira sobre a qual era colocada uma pequena lança e esta base oferecia precisão e propulsão ao arremesso da seta.

Outro curioso exemplo da diferença entre as tribos é que os Ulam faziam sexo como bestas, com o macho agarrando a fêmea por trás e rapidamente concluindo o coito. Ao longo da história vemos o desenvolvimento de uma espécie de romance entre a garota Ivaka e um dos Ulam. Eis que em certa ocasião eles iniciam o coito, mas a garota faz algo inusitado. Ela se vira de frente para ele, assumindo a posição que hoje conhecemos como "missionária" ou "papai-mamãe".

É interessante como esta simples mudança de posição mostra que aqueles humanos estavam avançando para outro estágio, diferenciando-se dos animais. Até mesmo na prática sexual, desenvolve-se uma diferença entre a barbárie e a civilização.

O contraste entre os Ulam e os Ivaka marca a diferença entre barbárie e civilização. Pode-se dizer que a civilização nasceu ali, no domínio do fogo, quando enfim os humanos superaram a limitação animal, pois existem animais capazes de manipular objetos como ferramentas e construir casas, mas somente os humanos dominaram o fogo e desde então avançaram numa jornada tecnológica e científica de conhecimento e domínio dos elementos da natureza.

Obviamente a civilização não é apenas um fenômeno tecnológico ou científico, mas também cultural, de comportamento, de valores e até mesmo de predileção ao pacifismo. As tribos mais bárbaras optavam pela violência ao primeiro contato, cobiçavam e roubavam o que era dos outros. Isto porque viviam num constante estado de escassez e a escassez de recursos básicos alimenta a barbárie.

A tribo Ivaka desfrutava de abundância proporcionada pelos seus avanços tecnológicos, pois tinham armas de caça melhores, tinham o fogo sem necessidade de roubá-lo de outras tribos, então já não eram predispostos a buscar sempre o conflito. 

É certo todavia que a civilização não deve adotar o pacifismo no sentido de tornar-se frágil e indefesa. O pacifismo da civilização é o mesmo dos búfalos e hipopótamos. São pacatos até o momento em que precisam se defender. Os Ivaka tinham armas melhores e com o atlatl podiam facilmente derrubar qualquer bárbaro que se aproximasse com um porrete.

A paz na civilização é a paz pela força e pela ordem, o que, ironicamente, pode levá-la de volta à barbárie caso esta ordem se torne tirânica. A luta da civilização contra a barbárie é eterna. É uma luta defensiva, protegendo-se da invasão dos bárbaros, e é uma luta preventiva, evitando que ela própria se corrompa e retorne à barbárie.

Quest for Fire (1981)

(22,08,2024)

Palavras-chave:

Anthony Burgess, Jean-Jacques Annaud, Nicholas Kadi, Rae Dawn Chong, Ron Perlman

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