O terror basicamente explora o medo da violência e, mais especificamente, o medo da dor. Ao assistir os personagens sendo mutilados, torturados, somos tomados pelo desconforto ao imaginar a dor que eles estão sentindo. Provavelmente a maioria dos filmes de terror usa a dor como o meio para assustar a audiência (além dos infames jumpscares).
Além do tormento físico, também temos o tormento psicológico que muitas vezes é alcançado por meio da dor física. A tortura do corpo quebra a alma, leva a mente ao desespero e à loucura. Todavia o terror psicológico recorre menos à dor e à violência física do que o típico terror gore e não à toa costuma envolver um roteiro mais refinado, que busca explorar as sutilezas da alma humana.
Seja na dor física ou psicológica, a forma suprema do terror está em seu aspecto ontológico, quando ele leva os personagens, as vítimas, ao estado definitivo de violência: a desumanização.
Para um humano, nada é mais aterrorizante que a destruição de sua humanidade, quando ele é reduzido a algo subumano, é reificado¹ (ou coisificado, num português moderno).
Tusk (2014) aborda justamente este aspecto do terror. Provavelmente há uma certa inspiração no já clássico A Centopeia Humana (2009), onde as vítimas são coisificadas e transformadas em grotescas centopeias. Em Tusk, a vítima vira uma morsa.
Este filme, escrito e dirigido pelo Kevin Smith, é uma tragicomédia. Em muitos momentos não se leva a sério, mas ao mesmo tempo aprofunda-se neste drama terrível de uma pessoa que é privada de sua humanidade, reduzida a uma besta.
O "cientista maluco" nesta história usa o pseudônimo Howard Howe. Ele próprio é alguém que perdeu sua humanidade ao conhecer o pior do ser humano. Sendo desde criança vítima de diversos abusos, ele conheceu a barbárie, chegando à conclusão que a barbárie tem rosto humano, que os humanos são os monstros neste mundo.
Sabemos certamente que humanos cometem coisas crudelíssimas, mas este é apenas um aspecto de nossa realidade. O problema de Howard foi ter conhecido apenas a barbárie, sem ter conhecido a civilização e as almas boas deste mundo. Não se pode generalizar o todo com base apenas na parte. A humanidade é mista, nela misturam-se barbárie e civilização. Nossa eterna luta é para impedir que a barbárie supere a civilização.
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Quando seu único amigo é uma morsa. |
Mas voltando ao filme, na mente perturbada de Howard, os humanos são os monstros e ele sempre viveu com esta concepção. Certa vez ele sofreu um naufrágio e foi meio que resgatado por uma morsa. Este momento para ele foi uma epifania. Pela primeira vez ele experimentou a bondade e esta não veio de um humano, mas de uma morsa. Ali ele completou a sua deturpada visão de mundo: humanos são monstros e a salvação dos humanos seria remover deles a humanidade, transformando-os em outra coisa. No caso, em uma morsa.
Assim vemos o protagonista e vítima, Wallace, sendo cirurgicamente transformado em uma morsa, inclusive tendo a língua removida para que só possa se comunicar com grunhidos. A cirurgia envolve amputações e enxertos, mas Howard faz tudo isto usando sedativos e anestésicos.
Ou seja, neste terror, o vilão não inflige dor. Ao contrário, ele faz questão de poupar a dor da vítima, pois, na cabeça perturbada dele, ele não está fazendo o mal. Ele está salvando Wallace, removendo dele a humanidade. Pois é, vilão com "boas intenções" nunca dá certo.
O fato é que o terror e o sofrimento aqui não tem nada a ver com dor, apesar de haver uma violência brutal sobre o corpo da vítima. O terror puro está na sua desumanização. De tal forma esta experiência afeta o psicológico de Wallace, que ele simplesmente abandona a humanidade e se convence de que é uma morsa.
A ideia deste filme surgiu como uma piada. Kevin Smith conversava com seu amigo Scott Mosier no podcast SMocast e ficaram devaneando e caindo na gargalhada com a ideia de alguém viver vestido como uma morsa. A ideia escalou a ponto de virar um filme. Apesar da ideia interessante, o filme foi um grande fracasso. Foi uma produção modesta, feita com apenas 3 milhões de dólares, mas não arrecadou nem 2 milhões na bilheteria. Convenhamos que é um tipo de humor/terror para poucos.
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Johhny Depp está irreconhecível. |
Detalhe que no elenco temos Johnny Depp e sua filha, Lily-Rose. Ambos inclusive interagem em uma cena, pois Depp é o detetive que investiga o caso e Lily é uma balconista que viu Wallace antes dele desaparecer. A outra balconista é a própria filha do Kevin Smith, a Harley Quinn Smith. Sim, o Kevinho deu o nome da Harley Quinn para sua filha. Ah sim, também temos o Haley Joel Osment, o queridinho de Hollywood nos anos 2000, com filmes como O Sexto Sentido (1999), A Corrente do Bem (2000) e Inteligência Artificial (2001).
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O multiverso do Haley Joel Osment. |
(08,09,2024)
Notas:
1: Notinha etimológica. Em latim, a palavra "res" significa "coisa", tanto que daí vem a palavra "república" (a coisa pública). E daí também vem o verbo "reificar" (transformar ou tratar algo como objeto, como coisa). Obviamente esta palavra caiu em desuso, vencida por sua versão mais coloquial "coisificar", mas não está de todo morta e usá-la-ei sempre que quiser (assim como as mesóclises).
Palavras-chave:
A24, Johnny Depp, Genesis Rodriguez, Haley Joel Osment, Justin Long, Kevin Smith, Lily-Rose Depp, Michael Parks
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