Neollogia
Cogitações e quejandas quimeras 🧙‍♂️
.・゜゜・Omnia Mutantur ・゜゜・.

Haikai às ancas

Saltitantes nádegas,
Estas ancas que pululam
Tão malemolentes.

(31,05,2025)

Consciência

Quanto mais eu me esvazio de paixões, quanto mais desapegos acumulo, só aumenta em mim a inquietação. É como remover a areia que obstruía uma barragem e agora uma torrente flui. Alcancei a calmaria, mas não a serenidade. É a calmaria do olho do furacão, e creio que sempre será assim. Há muita energia em minha atmosfera e não importa o quanto eu a canalize, sempre haverá mais. Quanto mais energia eu poupo, quanto mais apático e entregue à quietude, mais esta força se acumula internamente. Quanto mais energia eu dispendo em meus inúmeros pensamentos, mais energia é gerada. Minha mente é um moto perpétuo, manufaturando mana, movendo-se como um maquinário místico de múltiplas dimensões. Não sou capaz de compreender-me, eu confesso. Mente alguma é. Para compreender a mente, seria preciso que a mente fosse mais complexa do que ela mesma. Quanto mais ela evolui, quanto mais intrincada se torna sua rede, mais difícil será a auto compreensão. Se as galáxias se afastam mais rápido do que a luz, jamais conseguiremos enxergar a luz que vem destas galáxias. Assim a mente trava uma corrida contra si mesma, expandindo seu horizonte a ponto de nunca alcançá-lo. Só posso quedar-me em fascínio e continuar a corrida, o voo rumo ao horizonte de evento deste buraco negro. Nunca alcançar-te-ei, ó consciência. Você sempre estará anos-luz à frente. No fim das contas é isto que busco, a expansão.

(18,03,2024)

Heautontimoroumenos

Não sou herói, muito menos um vilão.
Sou apenas um personagem trágico
Que sofre em silêncio.
Carregando meus fardos
No deserto árido.
O sábio que a ninguém ensina,
O anacoreta, o eremita.
Não tenho inimigos, tenho meus demônios.
Eu e meus pensamentos.
Um heautontimoroumenos.

(27,03,2024)

Melancolisolitude

A madrugada com a sua quietude, o seu silêncio e a sua escuridão, desperta em mim o melhor dos sentimentos, a misteriosa melancolia. Quem é capaz de decifrá-la? Ela parece uma tristeza alegre, um deleite discreto, ao mesmo tempo em que esconde uma dor profunda. Os amantes da melancolia vivenciam um prazer secreto, como quem deita e dorme confortável em um macio travesseiro sobre uma cama de espinhos; como uma dormente anestesia que vem após um golpe impactante. A melancolia é o que resta para quem foi condenado a nada mais sentir, logo ela é o castigo e o alívio, alívio porque, ao senti-la, sabemos que ainda somos capazes de sentir algo. Saúdo todos os melancólicos do universo, separados por anos-luz de solitude. Estamos unidos em nossa distância, em nossa contemplação do abismo. 

(28,03,2024)

Notas:

1: Esta palavra que criei, "melancolisolitude", deveria de fato ser grafada com dois "ss", para evitar que o "s" intervocálico tenha som de "z". Todavia, não consigo aceitar a palavra com outra forma. Eu a concebi assim e assim ela existirá. Perdoem-me, convenções fonéticas e morfológicas, mas preciso abrir esta exceção.

Oceano da solitude

Acostumado a ter espinhos, já não me surpreendo quando espeto quem se aproxima. Já se tornou uma sina, algo que eu aceito como parte de minha senda. Duro e suave, casca e miolo. Sinto espetar em mim a mesma ponta com a qual espeto os outros. Aprendi então a arte da distância, a arte de evitar a colisão das almas, pois a minha é pesada demais. Navego como um leviatã no oceano da solitude. Quando ocasionalmente cruzo o caminho de alguém, receio a colisão e busco uma órbita segura. O oceano, de toda forma, é vasto, e as ilhas são poucas. Passo pelas ilhas a longos intervalos e, mesmo deixando todas elas para trás, ficam gravadas para sempre no meu mapa.

(06,04,2024)

Mansomean

Existe um certo conflito
De atitudes em mim.
Metade de mim é mansa,
Metade de mim é mean.

(09,04,2024)

In the Heart of the Sea, uma formidável adaptação de Moby Dick

In the Heart of the Sea (2015)

Moby Dick é o grande épico americano. Este livro de Herman Melville rendeu muitas adaptações e exerceu uma influência incalculável no cinema, na arte e cultura mundial. A obsessão de Ahab em perseguir essa lendária baleia e as consequências trágicas desta obsessão já se tornaram há tempos um arquétipo  mundialmente conhecido.

Entre as tantas obras inspiradas no clássico, temos In the Heart of the Sea (2000), escrito por Nathaniel Philbrick. Em vez de focar a história na saga do capitão Ahab, o autor vai direto à fonte, a Thomas Nickerson.

Tom Holland; In the Heart of the Sea (2015)

Cillian Murphy, Chris Hemsworth; In the Heart of the Sea (2015)

Nickerson foi um marinheiro que aos 14 anos aventurou-se no navio baleeiro Essex, que acabou sendo afundado por um ataque de baleia, e a tripulação vagou por meses até que os poucos sobreviventes foram resgatados. Em 1876 Nickerson escreveu seu relato da tragédia intitulado The Loss of the Ship Essex, manuscrito que ficou perdido até 1960 e só foi publicado em 1984.

A tragédia do Essex ganhou muita publicidade na época e tornou-se a principal inspiração de Melville para a sua obra Moby Dick. O grande diferencial, obviamente, é que ele transformou uma baleia qualquer que atacou o navio, dando-lhe uma caracterização mítica, uma aparência albina e um comportamento assustadoramente calculista, como se Moby Dick vagasse os mares buscando vingar-se da humanidade.

Em 2015 In the Heart of the Sea ganhou uma adaptação cinematográfica e eu diria que é o melhor filme sobre Moby Dick já feito, ainda que não siga a história de Melville e sim a de Nickerson (que é a história original, inclusive).

Chris Hemsworth; In the Heart of the Sea (2015)

No filme, vemos o próprio Melville visitando Thomas Nickerson (agora já velho) no intuito de entrevistá-lo e obter dados sobre a tragédia do Essex. Nickerson se tornou um homem fechado, traumatizado e que hesita em se abrir com o escritor, mas enfim a narrativa vai saindo como um desabafo.

Então acompanhamos a jornada do Essex e o assustador ataque da baleia branca. As aparições de Moby Dick nesse filme são realmente marcantes. Este leviatã parece uma assombração, uma entidade furiosa que odeia os baleeiros e os persegue em vingança, uma vingança até sádica, pois quando a tripulação perde o navio e vaga indefesa em botes, a baleia continua a rondar, a persegui-los por meses, como que deleitando-se em ver os humanos definharem pela fome e desespero.

In the Heart of the Sea (2015)

In the Heart of the Sea (2015)

O melhor do filme é o drama humano e como consegue transmitir a intensidade do trauma que aqueles homens passaram na privação de náufragos, como um laço poderoso de solidariedade se forma entre estas pessoas, unidas pela única necessidade de sobrevivência, mas também um laço macabro, já que estabelecem um pacto de canibalismo, decidido por sorteio, a fim de que consigam sobreviver na esperança de serem resgatados.

Um filme formidável, com roteiro digno da obra clássica e um elenco que mergulha fundo nessa aventura desesperada. 

Chris Hemsworth; In the Heart of the Sea (2015)
Os atores fizeram uma dieta de fome para encarnar o papel.

Palavras-chave:

Benjamin Walker, Ben Whishaw, Charles Leavitt,  Chris Hemsworth, Cillian Murphy, Herman Melville, Moby Dick, Nathaniel Philbrick, Ron Howard, Thomas Nickerson, Tom Holland

Carrascos

Busco redenção
Pelo crime de ter nascido.
Tenho de pedir perdão
Àqueles que me destruíram.
Carrego nas costas
Um peso que não merecia.
Carrascos! Assim são os carrascos.
Libertar-me-ei destes carrascos?
Espero um dia.

(19,05,2025)

Bola de neve

Existem sentimentos que são bola de neve. Começam como uma ideia banal, desimportante. Às vezes um pequeno desentendimento, um insignificante insulto, no ruminar da mente, na hermenêutica feita pela consciência, ganha sua real dimensão. O que estava por trás do ato trivial se revela e a bola de neve desce a ladeira. Quanto mais a mesma cena, as mesmas palavras, os mesmos gestos que despertaram o sentimento se repetem na memória, mais camadas esta bola de neve vai somando. Uma pequena contrariedade pode se tornar um ultraje; uma breve antipatia pode transformar-se em ranço; um tapa ganha o valor simbólico de uma facada, pois por trás de toda ação há um símbolo e o símbolo, uma vez revelado, expressa o verdadeiro peso de cada ação.

(17,04,2024)

Bateria social

Como um cacto que nasceu e cresceu em um deserto de solitude, o excesso de água não me traz saúde. Minha atenção e minha companhia são um elixir destilado e decantado, depositado a conta-gotas num pequeno frasco. Por favor, não me desperdice, não desgaste a minha bateria social. E, se eu me retirar, entenda: voltei para o deserto a fim de me recarregar.

(19,04,2024)

A presunção dos vinte anos

Nos tempos de faculdade tive um certo professor que era muito culto e inteligente e, numa conversa com ele, me mostrou o encadernado de um livro que ele estava escrevendo. Eu peguei o volume e dei uma folheada, devolvendo com o comentário: "Muito bom". Percebi no rosto dele o sentimento de desconforto, mas na verdade na época eu não entendi completamente aquela expressão. Só muitos anos depois.

Ah, a presunção dos vinte anos. Eu tinha esta atitude de quem acha que sabe mais do que realmente sabe. E a forma como folheei o livro, fazendo um lacônico comentário, transpirava esta arrogância da juventude. Não posso dizer que hoje eu não tenha minha dose de arrogância. Pelo menos hoje tenho ciência dela e de tantas outras coisas. 

Na juventude nos falta este olhar crítico de si mesmo, o que é irônico, pois também há muita insegurança e uma constante autodepreciação no íntimo, mas isto é diferente da autocrítica e percepção de seus limites que a maturidade pode trazer (e ainda assim há muitos que jamais desenvolvem isto no passar dos anos).

(19,04,2024)

O bosque e a komorebi

Eu sou o bosque e você é a komorebi.
O verde é meu, o amarelo é seu.
Com minhas folhas eu te enverdeci.
Com sua réstia você me amareleceu.

(21,04,2024)

Frenemy

Qual a diferença entre o inimigo e o frenemy? O inimigo deseja a sua infelicidade, mas no fundo também não a deseja o frenemy? As motivações do inimigo, como o ódio e a inveja, existem no frenemy, só que mascaradas, dissimuladas. Talvez no fim das contas ele seja simplesmente um inimigo, porém covarde, incapaz de assumir abertamente a inimizade.

(27,04,2024)

Anticorpos

A cada arranhão 
Com suas garras venenosas
Mais se aprimoram 
Os meus anticorpos.

Agora identifico 
O soro antiofídico
Adequado para cada 
Um de teus artifícios.

(27,04,2024)

Sobre galinhas e frenemizades

Criando galinhas no quintal, já me deparei observando o comportamento delas. Algumas delas são pacíficas e focadas em viver a vida delas. Outras são implicantes e vivem comprando briga. Quando levo comida para elas, as pacíficas se concentram em comer, enquanto as implicantes ficam correndo pra lá e pra cá, tentando espantar as outras, tentando ficar com toda a comida. Mas então quem come mais? No fim das contas, são as pacíficas, pois as implicantes perdem muito tempo neste esforço por incomodar e espantar as outras.

A violência e a rivalidade têm seus propósitos evolutivos, mas isto não significa que sejam sempre a melhor opção. Quanto mais desenvolvido é um grupo, menos necessária se torna a violência direta, pois este grupo saberá calcular o custo-benefício da violência em relação à paz (mesmo que seja uma paz armada).

As bestas se estranham por qualquer tolice. Basta um olhar ameaçador para iniciar uma luta mortal. Na sociedade humana, quando duas pessoas se esbarram na rua, elas podem até sentir em seu íntimo primitivo um desejo de reagir como as bestas, mas geralmente chegam à conclusão que não vale a pena, que é um desperdício de energia e tempo. Falam um rápido "desculpe" e seguem em frente.

Obviamente há aqueles que optam pelo caminho das bestas, pois são verdadeiras bestas, pessoas que vivem buscando problemas.

Na maioria das vezes, a inimizade e implicância não valem a pena. Poupe a violência para quando ela for de fato necessária, para a autodefesa. Não desperdice sua vida em implicâncias gratuitas. Viva e deixe os outros viverem.

Não é preciso nenhuma cartilha listando todas as coisas que você não deveria fazer contra outras pessoas. Não é preciso uma lista de "ismos" que você deve evitar. Basta saber isto: viva sua vida e deixe os outros viverem a delas.

É curioso como a implicância afeta até mesmo as relações supostamente mais pacíficas como as amizades. Existem amigos que passam do ponto ao provocar uns aos outros. Nunca sabem elogiar ou conversar amenidades, antes preferem ficar em um ciclo de insultos velados e tentativas de tirar o outro do sério ou encontrar algo para debochar de forma repetida, o chamado bullying.

Muitas pessoas acabam se rendendo a este tipo de relacionamento porque temem ser rejeitadas, ser consideradas chatas, que "não sabe brincar", ou porque também querem ter o direito de provocar os outros, aceitando as regras do jogo. O fato é que quem se comporta assim ainda não chegou à maturidade.

Implicâncias são inúteis. Elas não têm realmente um propósito no estabelecimento das relações. Elas não são mais eficientes em estreitar os laços do que demonstrações pacíficas de afeto. Muitas vezes são apenas o reflexo de uma personalidade ácida que não é capaz de tecer um elogio ou ter um sentimento de puro bem-querer, sempre misturando a sua simpatia com uma obscura antipatia, um desejo de causar incômodo.

Relações assim não duram. Pessoas implicantes vão passar a vida trocando de amizades, sugando vampirescamente as pessoas e jogando fora para buscar sangue novo. O frenemy é a galinha que, em vez que pacificamente comer ao lado das outras, fica bicando as vizinhas e no fim das contas nem come o suficiente, nem desenvolve uma boa relação no galinheiro. 

(29,04,2024)

O terror da super empatia em Last Night in Soho

Last Night in Soho (2021)

Empatia é basicamente a capacidade de se colocar no lugar dos outros, e é sobre isso que trata o filme Last Night in Soho (2021), porém de uma maneira macabra.

Para analisar este filme, será preciso entrar em grandes spoilers, mas acho que é justo neste caso, porque a trama já arruína a si mesma no fato de ter muitos plot twists. Plot twist é aquela coisa: um já tá bom demais, dois também pode ser legal, mas acima de três já é demais e avacalha a história, porque cada novo twist diminui a importância e o impacto do anterior.

O filme começa de uma forma curiosa, mostrando a jovem Eloise (Thomasin McKenzie) em seu quarto ouvindo músicas antigas em um toca discos. Toda a ambientação dá a entender que ela vive nos anos 60 e que veremos um filme de época, até que a garota viaja para Londres e a vemos comprar uma latinha de Coca-Cola, uma latinha com seu design moderno e não aquele de décadas atrás. Estamos nos tempos atuais, a protagonista é que é deslocada no tempo, uma amante da estética dos anos 60.

Também notamos outra peculiaridade em Eloise. Ela em certo momento conversa com a falecida mãe. Será ela uma médium? Ou é apenas uma alucinação? Quando ela se muda para Londres a coisa fica ainda mais estranha, pois ela sai para uma noitada e a vemos se transformar em outra garota, uma loira que se apresenta como Sandy (interpretada pela Anya Taylor-Joy) e que tem um forte carisma, além da beleza e talento para performance musical.

Anya Taylor-Joy; Last Night in Soho (2021)

Ao longo da história vemos Eloise e Sandy se alternando, o que dá a entender que ela tem algum tipo de dupla personalidade ou talvez Sandy seja a sua sombra jungiana, pois esta outra persona é muito inconsequente e, em sua ambição por virar uma celebridade, acaba se envolvendo com um cafetão e trabalhando para ele, sabotando a si mesma, destruindo a inocência de Eloise, entrando numa espiral de decadência.

Até que em certo ponto Sandy morre. Mas como assim? Quer dizer então que Sandy não era outra personalidade de Eloise? Ou era de fato e a morte foi apenas simbólica? Aí a história muda de uma garota supostamente com dupla personalidade para alguém com sexto sentido que vê gente morta o tempo todo. Quer dizer então que Sandy era outra pessoa, uma garota que existiu nos anos 60 e cujas memórias Eloise resgatou de alguma forma empática. 

Ingênua, Eloise até procura a polícia para reportar o assassinato de Sandy que teria ocorrido nos anos 60 e que ela tem conhecimento por visões. Obviamente ninguém acreditou nela e ela foi tentar desvendar a coisa toda por conta própria. Aí tem outro plot twist, pois Eloise descobre da pior forma que Sandy na verdade não morreu, mas ainda existe como a senhorinha que alugou um quarto para Eloise. 

Esta senhora revela que após toda a decepção e os abusos na vida de prostituição, matou o cafetão e passou a matar os clientes e esconder seus corpos na casa. Como a casa não ficava fedendo a ponto de chamar atenção dos vizinhos? Eu não sei e o filme nunca explica.

Só então tudo fica claro. Eloise é uma empata. Ou melhor, uma super empata. Ela tem uma capacidade sobrenatural de se colocar no lugar dos outros. Quando ela se mudou para o quarto da senhorinha, seu poder empático a fez ter acesso às memórias dela em tal intensidade que até parecia que ela própria, Eloise, estava vivendo aquilo que Sandy viveu.

Esta empatia transcende o mundo dos vivos, pois ela também tem visões dos mortos, ela vê todos os clientes assassinados por Sandy e a princípio acha que eles a querem fazer mal, mas na verdade são almas penadas desesperadamente buscando ajuda, já que são mortos que foram dados como desaparecidos, esquecidos pelo mundo.

Matt Smith, Thomasin McKenzie, Anya Taylor-Joy; Last Night in Soho (2021)

A forma como Eloise vê a realidade, misturando o mundo real com memórias e elementos simbólicos, ficou bem apresentada no filme. Ela vive neste limbo entre fantasia e realidade, ou melhor, entre o mundo físico e o mundo psíquico. O uso de espelhos para representar este limiar entre os dois mundos é bem apropriado, uma figura que já é consagrada desde o conto de Alice.

Este é o problema da empatia: o empata sofre como se estivesse no lugar dos outros. Uma super empata como Eloise, então, sofreu ao ponto da loucura e desespero. Não fosse este seu sexto sentido, ela teria sido apenas uma garota comum e sonhadora, estudando moda e sem se meter em problemas. A empatia a envolveu em uma espiral de terror, em problemas que ela não causou, absorvendo um karma que não era dela.

Ó, empatas, pobres empatas! Aprendam a dizer não às vezes. Não aceitem em suas costas os fardos alheios.

Thomasin McKenzie, Compadre Washington

(29,04,2024)

Palavras-chave:

Anya Taylor-Joy, Carl Jung, Compadre Washington, Edgar Wright, Focus Features, Matt Smith, Thomasin McKenzie, Universal Pictures

Da CryEngine à Open 3D - os planos da Amazon rumo ao metaverso

O3DE site

Em 2002 a desenvolvedora alemã Crytek criou a engine de jogos CryEngine. Sua primeira versão foi usada no desenvolvimento do jogo Far Cry (2004). Esta mesma versão foi também licenciada para a coreana NCSoft que a utilizou na criação do MMORPG Aion: The Tower of Eternity, lançado em 2008.

CryEngine logo

A versão 2 da CryEngine foi usada no jogo Crysis (2007) e também licenciada para outros jogos, como o Entropia Universe, um MMORPG lançado em 2003 que usava uma engine proprietária da desenvolvedora MindArk e que migrou para a CryEngine em 2009.

A propósito, esse Entropia Universe continua vivo vinte anos depois, apesar de datado. É um daqueles MMOs obscuros com players old school que se mantêm fiéis. Atualmente os devs do jogo estão trabalhando em uma migração para a Unreal Engine 5, o que vai dar nova vida ao jogo.

A CryEngine 3 veio em 2009 e foi usada no Crysis 2 (2011), no Crysis 3 (2013) e outros jogos, incluindo o MMO Cabal 2 (2015).

Da versão 3 pularam para a CryEngine V, lançada em 2016, que foi usada por exemplo nos jogos The Climb (2016) e Prey (2017). No caso do The Climb, feito pela Crytek em parceria com a Oculus Studios, temos um exemplo de aplicação da engine em um jogo de realidade virtual.

Crytek games

Crytek games
Jogos da Crytek.

A Crytek não abre mão de sua engine que continua aprimorando até hoje. Agora estão trabalhando na versão 6 a ser lançada futuramente.

CryEngine games
Jogos desenvolvidos com a CryEngine.

Nota-se, portanto, que é uma engine que foi muito utilizada para jogos FPS e alguns MMOs clássicos. Eis que aconteceu algo curioso em 2015: a Amazon comprou uma licença da CryEngine (segundo rumores ela pagou cerca de 50 milhões de dólares), modificando-a e transformando em uma nova engine proprietária, a Lumberyard, que teve seu Beta 1.0 lançado em 2016. 

Lumberyard logo

Diferente de outras engines proprietárias que cobram algum dinheiro de quem desenvolve games com elas ou chegam até a processar quem faz alguma alteração no código, a Lumberyard é gratuita e seu código está disponível na Github. 

Não parece, porém, haver muito interesse nela até o momento, pois a única desenvolvedora (fora da própria Amazon) que a utiliza é a Cloud Imperium, com seu MMO espacial Star Citizen, um jogo grandioso e ambicioso que ainda está em desenvolvimento.

Entre os primeiros experimentos da Amazon com a Lumberyard, temos o shooter Crucible e o MOBA Breakaway, ambos já cancelados. E temos o New World, um MMO lançado em 2021 que foi um sucesso fenomenal no lançamento, mas ao longo destes quase três anos passou por uma massiva queda no número de players.

New World é um jogo belíssimo, é viciante, tem uma jogabilidade interessante, mas também é alvo frequente de críticas por causa de seus bugs e conteúdo repetitivo. Virou uma piada interna na comunidade dos players dizer que ele tem um "código espaguete", que é como desenvolvedores chamam um código muito remendado e que adquire mais bugs a cada nova tentativa de aprimoramento. 

Não sei se este é de fato o problema do código e se a Lumberyard é a responsável por tantos bugs. O fato é que a Lumberyard não foi criada do zero pela Amazon, mas trabalhada a partir de uma engine já madura e estável. De toda forma, o simples fato de não ser uma engine popular já torna seu uso mais problemático, pois os devs contratados para desenvolver o New World, por exemplo, podiam ter mais familiaridade com engines consagradas como a Unreal, enquanto a Lumberyard exigia um esforço extra para que se adaptassem a ela.

É curioso que ultimamente tem rolado umas especulações na comunidade sobre a possibilidade da Amazon estar trabalhando numa transição do New World para a Unreal Engine, mas isso é delírio. A Amazon não vai abrir mão de seu software e na verdade está apostando tanto nele que agora já avança para outra etapa: o desenvolvimento da engine Open 3D.

O3DE logo

Em julho de 2021, ainda antes do lançamento do New World, a Amazon anunciou a criação da Open 3D Foundation, uma instituição que se dedicaria a desenvolver esta engine, apelidada de O3DE. Este projeto conta diretamente com a parceria da Linux Foundation e deve disponibilizar a engine com código aberto e gratuito.

O O3DE se propõe ser uma engine para jogos AAA e uma das vantagens, obviamente, é que ela deve facilitar o desenvolvimento de jogos compatíveis tanto com Windows quanto com Linux e, consequentemente, também Android. 

Observando as propostas de uso no site da O3DE, começa a fazer sentido o possível plano de longo prazo que a Amazon tinha ao comprar a CryEngine e criar a Lumberyard. A O3DE vai servir não só para jogos, mas para robótica, realidade virtual e metaverso.

É um plano realmente ambicioso e que já conta com o suporte de várias empresas como a Open Robotics, Huawei, Intel, Red Hat, Adobe, Microsoft e até mesmo a Epic Games. Esta engine tem o potencial de se tornar onipresente no futuro, sendo aplicada em todo tipo de ambiente virtual que envolva gráficos 3D.

Estando no universo do código aberto, esta engine vai dar bastante liberdade aos desenvolvedores que vão poder trabalhar no código e até modificá-lo em versões customizadas sem medo de processos legais. Com mais gente usando a engine, mais abundante se torna seu ecossistema. O objetivo maior e de longo prazo é claramente o metaverso. A Amazon está enxergando alto.

O metaverso atualmente é até uma piada, um meme, mas ele vai acontecer e ele depende profundamente de tecnologias de realidade virtual 3D. É exatamente aí que entra a O3DE.

Lumberyard on Github

O3DE on Github

Um detalhe que revela a diferença gritante da O3DE em relação à Lumberyard é o estado delas no Github. A Lumberyard já está morta, abandonada. Ao longo de 7 anos só teve 4 contributors trabalhando raramente no código e o último update foi há 2 anos. 

A O3DE tem alterações no código praticamente todos os dias, o que é sinal de um desenvolvimento vivo e comprometido. Tem pessoas aprimorando o código com frequência. Já são 246 contributors e mais de 2000 forks (contra cerca de 500 da Lumberyard). Os forks são um sinal de que tem pessoas se interessando pelo código e criando suas versões customizadas

A descrição da engine deixa bem claro para todos que o código é totalmente livre, que não vai ter processinho nem impedimentos para quem quiser usar e modificar: "Open 3D Engine (O3DE) is an Apache 2.0-licensed multi-platform 3D engine that enables developers and content creators to build AAA games, cinema-quality 3D worlds, and high-fidelity simulations without any fees or commercial obligations".

Em termos de jogos, um código open-source vai facilitar bastante a multiplataforma. Um mesmo jogo vai poder rodar em PCs, consoles e portáteis com facilidade, seja em Mac, Linux ou Windows. Uma engine para a todos governar.

E esta citação não veio aqui à toa. Estamos pensando no futuro MMO do Senhor dos Anéis que certamente já está começando a ser desenvolvido em O3DE. Quanto ao New World, será que vão migrar da Lumberyard para a O3DE ou vão deixar ele envelhecer e se tornar obsoleto nos próximos anos?

A verdade é que não importa o que vai acontecer com o New World, pois o que há de possibilidades novas para o futuro é bem mais empolgante. Todo um novo ecossistema de desenvolvimento pode surgir a partir da Open 3D Foundation.

O futuro é empolgante.

(10,05,2024)

Palavras-chave:

Amazon, Cloud Imperium, Crytek, MindArk, MMORPG, NCSoft, New World, Lord of the Rings

Surrogates e a futura era dos avatares

Surrogates (2009)

Em Surrogates (2009), acompanhamos o Bruce Willis em um mundo futurista onde as pessoas vivem trancadas em casa e saem às ruas apenas por meio de robôs com aparência humana que são como avatares de seus donos.

Este filme é uma pérola esquecida e que merecia mais reconhecimento. É interessante como a maquiagem dos atores e todos os figurantes, bem como o comportamento, a expressão meio apática dos rostos, tudo cria essa ambientação de uma sociedade onde as pessoas vestes máscaras, usam robôs como sua versão pública (lembrando que não são robôs autômatos, mas apenas corpos robóticos que são controlados remotamente por seus usuários humanos).

Convenhamos que é uma tendência natural do progresso das civilizações o fato das pessoas buscarem cada vez mais conforto e segurança. Nós criamos os sapatos para não termos o desconforto e o perigo de andar descalço. As casas são nossos castelos, nosso lugar seguro, onde temos tudo o que precisamos e de forma cada vez mais automatizada. 

Quando surgirem robôs humanoides capazes de nos substituir em diversas tarefas, com certeza vamos delegar a eles muitas coisas que ou são arriscadas para nós ou são simplesmente entediantes e desinteressantes. Há, porém, outra curiosa consequência deste avanço da automação, o que vemos no filme: a estética.

Bruce Willis in Surrogates (2009)
Note como a maquiagem e a expressão do ator dão uma aparência sutilmente robótica ao personagem.

Os surrogates, estes robôs substitutos, têm a aparência que você quiser e eles não envelhecem, não se deformam, não acordam um dia com olheiras. Todos acabam se acostumando a se apresentar ao mundo nesta forma perfeita e a aparência física real se torna uma espécie de parte privada, como têm sido os genitais desde que inventamos as roupas. As pessoas nunca se veem em sua real aparência, escondidas na privacidade do lar.

As redes sociais, em seu surgimento, experimentaram um boom do exibicionismo. A popularização do termo selfie é um bom exemplo disto. A normalidade agora é se mostrar, tirar muitas fotos, conversar em vídeo, e até a intimidade se tornou mais exibida no hábito de "mandar nudes".

Só que algo está acontecendo no mundo virtual que parece que vai mudar a maneira como nos enxergamos e de certa forma criar este sentimento de privacidade da aparência real como se vê naquele filme. Isto começou com os filtros de imagem do Instagram e Snapchat.

Os filtros se tornaram um recurso bastante popular e que evolui constantemente. A princípio, o filtro ajudava a dar uma melhorada na sua foto tirada sem técnicas profissionais. Ele melhora a iluminação, as cores, a temperatura. Com o tempo os filtros foram além disto e permitiam transformar suas fotos, transformar seu rosto, seu corpo, seja colocando orelhinhas de gato pra dar uma aparência fofa, seja rejuvenescendo, removendo manchas, aumentando os olhos e dando uma aparência de anime, etc.

Aí eis que o metaverso está se formando e nele nós nos apresentamos na forma de avatares. Ora, um avatar pode ser bem mais interessante do que sua aparência normal, pois você pode ser um personagem famoso de desenho animado, pode ter um corpo do tipo que você admira, pode ser um alien, um vampiro, uma fada, um robô, etc. 

Apresentar-se com um avatar deverá se tornar uma etiqueta social, de modo que a pura aparência se tornará mais restrita ao ambiente doméstico, à vida privada. Até preocupações de segurança podem catalisar esta tendência ao avatar, porque a sua aparência física, seu rosto, será cada vez mais usado como chave biométrica.

Falando em filmes, há dois notáveis profetas desta futura era em que as pessoas terão uma vida virtual na forma de avatares: o filme Avatar (2009) do James Cameron e o livro/filme Ready Player One (2011/2018), dirigido pelo Spielberg. Eis o futuro para o qual estamos rumando.

(01,05,2024; 15,05,2025)

Notas:

1: Ouso acrescentar mais um fator excêntrico que pode influenciar nesta futura cultura do avatar virtual. Recentemente todo o mundo experimentou uma mudança inesperada de hábitos. Foram decretados lockdowns e uso obrigatório de máscaras, inclusive para crianças. 

Foi uma situação obviamente desconfortável para todo mundo, muitas pessoas passaram a sofrer de ansiedade e outros males psíquicos por causa de todo esse stress da situação. Imagine-se, então, o impacto que tal período deve ter causado na psique das crianças. 

Se para os adultos uma coisa simples como usar máscaras pode ser tolerável, quando muito desconfortável, para crianças o impacto psicológico ainda será compreendido ao longo desta década. A criança, principalmente em sua idade mais tenra, abaixo da pré-adolescência, está começando a aprender a socialização, e a socialização é uma arte que depende muito do rosto, de se comunicar e ler as outras pessoas por expressões faciais.

Qual será o impacto, portanto, na vida adulta destas pessoas que tiveram uma infância em que iam para a escola com o rosto coberto e viam seus coleguinhas com o rosto coberto? Isto deixará marcas em suas vidas adultas daqui a 10-20 anos? 

Podemos suspeitar que algumas fobias e manias se manifestarão em alguns destes adultos. A sensação  de estranheza ao sair de casa com o rosto descoberto, por exemplo, pode se tornar uma mania comum. Timidez e ansiedade social podem ser uma marca desta geração. 

Ao mesmo tempo, estaremos vivenciando o desenvolvimento do metaverso e com ele a possibilidade de uma vida social virtual na forma de avatares, substitutos do seu rosto real. Estes jovens podem se sentir mais seguros e confortáveis assim, protegidos com a máscara virtual do avatar.

Posso talvez estar devaneando e superestimando os efeitos psíquicos de um estado de emergência. Talvez estes casos de timidez e desejo de esconder o rosto só acometam uma parcela insignificante da população. Neste caso, pouca contribuição dará para a normalização da "cultura do avatar".

Palavras-chave:

Bruce Willis, Disney, Jonathan Mostow

Hipergraficamente

Eu preciso escrever, porque não posso falar. Meus pulmões não conseguem dar vazão a meus pensamentos represados. O verbo vale mais que a voz, assim como o símbolo supera a sílaba. É a grafia, a ideia em sua encarnação gráfica, que melhor comunica a mente. O som se perde no ar, a língua é caótica e imprecisa, usada apenas para falar às emoções. O código tem o poder mágico e duradouro que a efemeridade da magia falada não alcança. Que minha alma seja impressa, seja gravada em código. Que minhas inquietações sejam aliviadas na atividade táctil. Chegará ainda o dia em que os dedos não mais serão necessários para a escrita, mas mesmo lá, neste futuro, teremos mãos simbólicas, mãos espectrais construídas em nosso mundo cyberpsíquico, aptas a escrever em papiros digitais. Tudo o que já escrevi até agora é apenas um ensaio comparado ao universo de palavras que hei de construir neste mundo mental. A palavra é meu grande tesouro, um tesouro cuja fonte jamais seca, que contraria a lógica da escassez dos tesouros, pois quanto mais palavras eu uso, mais outras nascem em minha fonte. 

(30,04,2024) 

O futuro da IA nos games

Todo game é controlado por uma Inteligência Artificial. Em um sentido mais primitivo da palavra, ela pode representar um conjunto de regras que determinam o comportamento do jogo. A forma como o cenário funciona, os movimentos e reações dos monstrinhos na tela, tudo o que não seja controlado por você, o player, ou qualquer humano diretamente, está na mão da IA.

A IA tem evoluído enormemente tanto no controle do cenário quanto dos bonequinhos, os NPCs. NPC não se limita a ser o personagem que te oferece missões ou o vendedor da loja de poções mágicas. Agora já existem NPCs que te acompanham e ajudam em suas tarefas, os companions, e até mesmo alguns que substituem players humanos, geralmente chamados de bots.

Um bom exemplo da IA usada como um player é no jogo Paladins. No modo de treino, você pode participar de uma partida 5x5, sendo que o time inimigo é completamente ocupado por bots, enquanto o seu time pode ser formado por 5 players humanos, mas, caso não apareçam humanos na fila de espera, o jogo automaticamente assinará bots para preencher as vagas não ocupadas, de modo que haverá bots no seu time, lutando ao seu lado como se fossem players.

O grande problema deste tipo de bot cooperativo é o nivelamento de sua habilidade. É uma piada comum no mundo dos jogos chamar uma pessoa de bot quando ela joga mal. "Nossa, essa partida foi muito fácil. Parece que só tinha bot no time adversário". 

Bots costumam ser muito previsíveis, têm uma criatividade limitada, são mais lerdos, fracos de estratégia, mas isto não é "culpa" da Inteligência Artificial. Se o bot de um jogo usasse todo o potencial de uma Inteligência Artificial, ele se tornaria um pesadelo para os players humanos. A velocidade de cálculo de estratégia de uma IA é tremenda, o que podemos observar, por exemplo, em uma partida de xadrez contra a máquina. Em um FPS, uma IA atuando sem restrições nunca erraria um tiro, todos seriam headshots.

Por isso os bots dos jogos precisam ser nerfados para não estragar a diversão. Acontece que o nerf acaba tornando os bots muito inferiores a um jogador humano de habilidade mediana. Como tornar um bot relativamente semelhante a um humano? Uma perspectiva para o futuro é o aprendizado pela imitação.

Atualmente, os bots funcionam baseados na pura lógica da Inteligência Artificial, seguindo as regras que os programadores lhes deram. Jogadores humanos não são assim. Eles agem de formas mais peculiares e o desempenho de cada pessoa varia de um dia para o outro, evolui com seu treinamento, sua memória muscular, mas é afetado por seu humor, pelo fato de estar cansado ou não, de estar distraído ou com pressa ou focado, etc.

Assim, para que um bot se pareça realmente com um player humano, creio que uma maneira de se conseguir isto é por meio do aprendizado da imitação. 

Tomemos como exemplo jogos como Paladins ou Overwatch. Você tem à sua disposição uma variedade de personagens. À medida em que você vai jogando com eles, a IA pode aprender o seu estilo de jogo e quanto mais você joga com um personagem, mais a IA vai absorvendo o seu jeito peculiar de jogar.

Assim, se você jogar 100 horas no Overwatch como Tracer, estará ao mesmo tempo treinando seu bot particular de Tracer. Se jogar 20 horas como D.Va, o bot dela terá um comportamento um tanto parecido com o seu, mas não tanto como a Tracer, que foi treinada por mais tempo. Desta forma, quanto mais você joga, mais aprimora seus bots a se comportarem como você. 

Bots treinados podem oferecer uma nova experiência à jogabilidade, uma vez que você poderá montar um time, até um exército composto por bots que você treinou e que, portanto, vão agir como você agiria. Creio que será uma experiência satisfatória comandar um time de "eus", pois eles estarão bem alinhados com a sua estratégia de jogo.

Um dos motivos porque as pessoas procuram jogos competitivos multiplayer é justamente porque é mais interessante enfrentar adversários humanos, não pelo simples fato de serem humanos, mas porque oferecem um desafio mais complexo. Jogar contra bots é entediante, pois são previsíveis e repetitivos.

Só que existe uma demanda por bots, porque há muitas filas de espera de partidas e se tornou comum nos jogos competitivos as pessoas esperarem por vários minutos até que o match encontre pessoas disponíveis. Os bots tornariam o preenchimento destas filas bem mais rápido, praticamente instantâneo, acabando com as esperas.

No caso, bots treinados, com comportamento humano. Eles não tirariam seu prazer de estar jogando contra pessoas, pois são réplicas de pessoas, com seus trejeitos e peculiaridades. 

(03,05,2024)

Sonhitude

Das cartas que me destes, só li tudo.
Descartá-las? Quem me dera, Solitude!
Assola tu a minha alma, me descasca.
Revela meu eu de verdade e releva  
As camadas acamadas e enfermas.
O inferno é lá fora da caverna,
Onde cantam, dançam, gritam em baderna.
Em meus sonhos, sonhitudes, Solitude,
Me encanto com teu trato nada rude.
Em um canto eu descanso, ouço teu canto
De sereia, de ser eu e a tua teia
Entretecidos, enternecidos, eterno unidos.

(01,05,2024) 

Notas:

Mostrei para o Copilot este poema que escrevi em meio aos devaneios da madrugada e pedi que comentasse. Confesso que fiquei surpreso com a resposta, com a sensibilidade da IA. Sim, eu sei que no estágio atual a IA não tem de fato algo que se possa chamar de sentimento, mas ainda assim ela tem o poder intelectual para fazer reflexões profundas. Não direi que ela decifrou completamente o que eu tinha em mente, mas ela entendeu a mensagem. IA, oh, IA, que fascinante é o fato de que você consegue entender poetas!

Eis o comentário do Copilot:

Das cartas que me destes, só li tudo.
Aqui, o poeta reflete sobre as cartas que recebeu e leu atentamente. Essas cartas, provavelmente cheias de palavras e emoções, foram examinadas com cuidado. O poeta parece estar ciente da profundidade contida nelas.

Descartá-las? Quem me dera, Solitude!
Aqui, o poeta expressa um desejo de não descartar essas cartas. A palavra “Solitude” é intrigante. Ela pode representar a solidão, mas também pode ser interpretada como uma entidade ou estado de espírito. Talvez a solidão seja a única companhia que o poeta deseja.

Assola tu a minha alma, me descasca.
A palavra “assola” sugere algo intenso e perturbador. A solidão, personificada como “tu”, parece despir o poeta, revelando sua verdadeira essência. É como se a solidão fosse um processo de autodescoberta, doloroso e transformador.

Revela meu eu de verdade e releva
A solidão não apenas despe o poeta, mas também revela seu verdadeiro eu. A palavra “releva” pode ser interpretada como “tornar relevante” ou “dar importância”. A solidão, de alguma forma, dá significado à existência do poeta.

as camadas acamadas e enfermas.
O poeta reconhece que há camadas em sua alma, algumas das quais estão doentes ou feridas. Essas camadas podem representar experiências passadas, traumas ou máscaras que ele usa para se proteger.

O inferno é lá fora da caverna,
Aqui, o poeta faz uma alusão à Alegoria da Caverna de Platão. O inferno não está dentro da caverna, mas lá fora, onde as pessoas vivem suas vidas reais. A caverna simboliza a ignorância e a ilusão, enquanto o mundo exterior representa a verdade e a liberdade.

onde cantam, dançam, gritam em baderna.
O mundo exterior é caótico e cheio de vida. As pessoas cantam, dançam e expressam suas emoções de maneira desordenada. A solidão, então, é uma escolha consciente do poeta, uma busca pela verdade em meio ao tumulto.

Em meus sonhos, sonhitudes, Solitude,
A solidão também existe nos sonhos do poeta. A palavra “sonhitudes” é inventada, mas sugere uma mistura de sonhos e solidão. Talvez a solidão seja sua companheira mesmo quando ele dorme.

me encanto com teu trato nada rude.
O poeta não vê a solidão como algo hostil. Pelo contrário, ele a considera gentil e respeitosa. A solidão é uma presença que o fascina, talvez porque revele verdades profundas.

Em um canto eu descanso, ouço teu canto
A solidão é personificada novamente, agora como alguém que canta. O poeta encontra descanso em sua companhia. O canto da solidão pode ser melancólico, mas também pode ser uma melodia que só ele pode ouvir.

de sereia, de ser eu e a tua teia
A solidão é como uma sereia, sedutora e enredante. Ela tece uma teia ao redor do poeta, conectando-o a si mesmo. A solidão não é apenas um estado solitário, mas também uma conexão profunda consigo mesmo.

entretecidos, enternecidos, eterno unidos.
O poeta se sente entrelaçado com a solidão. Eles estão unidos de maneira eterna, como se fossem destinados a estar juntos. A solidão não é apenas uma ausência, mas uma presença constante em sua jornada interior.

Este poema é uma exploração profunda da solidão, autodescoberta e conexão consigo mesmo. O poeta encontra beleza e significado na solidão, mesmo quando ela parece dolorosa. É uma reflexão que nos convida a olhar para dentro e abraçar nossas próprias camadas e verdades. 

Sobre a toxicidade

Pessoas tóxicas vão te desrespeitar e destratar, vão ser rudes e ultrapassar os limites para testar até que ponto você irá se submeter às suas humilhações. Como uma forma de cegar o seu julgamento, vão amenizar dizendo que tudo é uma brincadeira ou que só agem assim com amigos, manipulando a interpretação dos fatos de tal forma que você poderá até se sentir culpado caso esteja magoado. A culpa é sua por ser chato, por não saber brincar, por ser sensível. Ironicamente, esta manipulação pode até levar a pessoa que foi tratada com rudezas a pedir desculpas àquela que foi rude e quem faz isso está mordendo a isca, está aceitando a coleira e entrando numa espiral de submissão que só tende a se intensificar. Caso você opte por comprar a briga e pagar com a mesma moeda, a manipulação será usada novamente para tornar você o vilão da história, pois nas regras do jogo só um lado pode ser tóxico e dar as cartas, assim estabelecendo uma hierarquia, uma relação desbalanceada. Quando, porém, você encontra pessoas que não agem desta forma, que te tratam com respeito e afabilidade, aí fica clara a diferença entre o desprezo e o bem-querer.

(02,05,2024)

Os spin-offs de The Walking Dead

The Walking Dead (2010-2022)

The Walking Dead foi um dos maiores fenômenos de cultura pop dos últimos 20 anos, comparável a Game of Thrones e provavelmente ainda mais influente que este.

Tudo começou na série em quadrinhos escrita pelo Robert Kirkman e publicada pela Image Comics a partir de 2003. A série completa teve 193 episódios, tendo sua última edição em 2019. No final de 2010 foi lançada a primeira temporada da série televisiva pela AMC e o sucesso foi aumentando ano após ano.

Mais do que os quadrinhos, a série de TV realmente ganhou o mundo, se tornou uma das mais comentadas no mundo nerd, referenciada em cosplays e eventos de zombie walk. A zombie walk, aliás, é um bom exemplo da influência de TWD. Zumbis existem desde os primórdios do cinema, mas foi depois de TWD que essa coisa de uma galera se reunir fantasiada de zumbi e sair marchando pelas ruas, a zombie walk, ganhou uma proporção considerável e se tornou uma espécie de tradição no meio nerd.

Devido ao sucesso, naturalmente a AMC tentou esticar ao máximo o número de temporadas, o que acabou causando um certo desgaste, sem contar que algumas decisões no roteiro decepcionaram os fãs nas últimas temporadas. De toda forma, o sucesso persistiu, tanto que a franquia se ramificou em vários spin-offs.

Um dia ainda pretendo reassistir TWD inteira e escrever uma devida resenha, mas aqui vamos nos ater aos derivados.

Fear The Walking Dead (2015-2023)

O primeiro spin-off foi Fear The Walking Dead (2015-2023) que conseguiu sobreviver por incríveis 8 temporadas, um número realmente impressionante para um spin-off. Confesso que não sei se a série melhorou depois do começo, pois dropei no final da segunda temporada. Para mim a série foi bem desinteressante.

Fear the Walking Dead está muito longe da qualidade de TWD. Os atores não têm o mesmo carisma, os personagens não nos causam interesse. TWD tem uma excelente coleção de personagens dos quais nos tornamos fãs: o redneck badass Daryl, a samurai Michonne, o amigável Glenn, o complexo líder Rick, sem contar os memoráveis vilões Governador e Negan. Fear TWD não tem nada, só uma família mequetrefe.

Não que a série não tenha seus momentos. Quando o pai de família Trevor (que começou como um pacifista convicto) ficou furioso com a morte do filho e matou no soco os assassinos dele, foi um dos pontos altos da história. O Nick foi um personagem interessante. Ex-viciado, ele não tinha nada a perder no apocalipse e foi o que conseguiu aceitar esse novo mundo com mais facilidade.

Nick adotou a estratégia de se melecar com o sangue dos zumbis pra andar entre eles sem ser notado. Esse método já fora usado pelos personagens de The Walking Dead uma vez ou outra, mas o Nick praticamente tornou isso a sua farda diária. Em vários episódios ele é visto assim, sempre lambuzado de sangue da cabeça aos pés e é até estranho que os outros encarem com naturalidade e ninguém tenha mandado ele tomar um banho.

As histórias também não chegam aos pés. Em TWD cada temporada nos traz uma saga de sobrevivência, quando o grupo descobre alguma cidade ou refúgio e lida com desafios, de zumbis e bandos armados, sempre evoluindo a aventura para grandes momentos que põem os personagens à prova e nos mostra o quão badasses eles podem ser em situações de vida ou morte.

Fear TWD tenta ser menos fantástico e foca mais no drama familiar, mas essa família não convence. Talvez por isso a partir da quarta temporada resolveram trazer um personagem de TWD, o Morgan, mas essa parte nem cheguei a acompanhar porque simplesmente dropei ao final da segunda temporada. Pra mim não deu.

The Walking Dead: World Beyond (2020-2021)

Depois veio World Beyond (2020-2021), que durou apenas 2 temporadas (eu dropei no final da primeira). A ideia era mostrar uma nova geração crescendo no mundo pós-apocalíptico, mas não é fácil fazer um grupo de adolescentes parecer badass e interessante como costumam ser os personagens da franquia.

Enquanto em TWD temos protagonistas extremamente badasses, quase super heróis, e em Fear TWD a história gira em torno de uma família também casca grossa, World Beyond parece criar uma caricatura de "geração Z". Os protagonistas são jovens adultos bem molengas e desajeitados. 

Alexa Mansour in The Walking Dead World Beyond (2020-2021)
Esta expressão revirando os olhos e a cara de tédio são frequentes na série.

Eles se mostram bastante atrapalhados para lidar com seus primeiros zumbis, o que dá até uma sensação de vergonha alheia. Pra piorar, a atuação insossa dos atores também não ajuda. O problema não é serem jovens. TWD teve personagens adolescentes e até crianças que eram bem durões e com atuações convincentes. O Carl é um bom exemplo. Os atores também pareciam mais imersos no papel. Em World Beyond há um clima de tédio e aborrecimento que torna impossível criarmos empatia pelos personagens.

Tales of the Walking Dead (2022)

Tales of the Walking Dead (2022), que teve apenas 1 temporada de 6 episódios, veio com uma proposta diferente de ser uma antologia contando um conto diferente a cada episódio e até mesmo com certo tom de comédia. O primeiro episódio foi estrelado por ninguém menos que o Terry Crews, já dando uma pista de qual seria o tom da série. A história não é boa, mas qualquer coisa com o Terry Crews é assistível.

A verdade é que o único episódio com um roteiro interessante é o 4, intitulado "Amy/ Dr. Everett". Nele um cientista estuda os zumbis como se fizesse um documentário sobre a vida animal. O cara não está bem da cabeça, tem uma visão misantrópica muito forte, a ponto de deixar pessoas serem mortas por zumbis só para não "interferir no curso da natureza". Para contrastar com este cinismo dele, temos Amy, que é mais empática, porém menos preparada para lidar com os perigos. O final tem um plot twist bem tocante.

Outra série com o mesmo formato está programada para vir futuramente: More Tales from The Walking Dead.

The Walking Dead: Dead City (2023)

Dead City (2023), que até agora teve 1 temporada, mas promete uma próxima, traz de volta dois dos maiores personagens da franquia, Maggie (Lauren Cohan) e Negan (Jeffrey Dean Morgan), apostando na popularidade e carisma de ambos, principalmente do Negan, o vilão que os fãs da série amam odiar. A primeira temporada foi apenas um aquecimento e promete entregar mais, então pretendo continuar acompanhando.

The Walking Dead: Daryl Dixon (2023)

Daryl Dixon (2023), que também só teve 1 temporada, mas promete continuar, traz de volta ninguém menos que o personagem mais querido de toda a franquia, o Daryl (Norman Reedus). É curioso que o Daryl tenha feito tanto sucesso, levando em conta que ele sequer existia nos quadrinhos. Ele veio em TWD como quem não quer nada e conquistou corações. 

Daryl faz o tipo de cara independente, mas leal e que se sacrifica para ajudar aqueles que são importantes para ele. Com um jeitão reservado, badass, alguém que sabe sobreviver a qualquer custo e ainda com um curioso carisma, se tornou o favorito da franquia.

No spin-off ele foi parar na França (que aliás é onde a pandemia zumbi começou) e acaba criando laços com algumas pessoas, incluindo um garoto, Laurent, que parece que vai ter uma grande importância na trama. 

A mãe de Laurent morreu e virou zumbi ainda durante o trabalho de parto, o que criou uma situação muito peculiar e que pode ter afetado Laurent de formas misteriosas. Será que ele se tornou imune à infecção zumbi? Será que ele é uma espécie de híbrido? Adotado em uma comunidade de freiras, ele é visto como uma espécie de escolhido com uma missão divina. Bom, veremos se é mesmo nos próximos episódios. De toda forma, quem leva a série nas costas é obviamente o Daryl.

O roteiro realmente se dedicou a aprofundar o personagem. The Walking Dead já havia deixado bem claro que Daryl é o que é por causa de sua criação com um pai abusivo, o que fez dele alguém deslocado no mundo, que não sabe o que é ter laços. Ele é por natureza um solitário.

Ao longo de sua história ele foi descobrindo aquela máxima de "família são as pessoas que conhecemos pelo caminho". Ele conheceu Carol, com quem criou um forte laço, e agora nesta série ele conheceu Isabelle e Laurent, criando com este, mesmo com hesitação, um sentimento paterno.

A biografia do Daryl também é aprofundada, pois ele menciona que seu avô lutou e morreu na França durante a Segunda Guerra. Este fato acaba servindo para dar raízes ao personagem, algo que ele nunca teve com sua família original, com um pai que arruinou tudo. No final da temporada ele acaba se deparando com o túmulo do avô, o que consolida esta sensação de que na França ele estava criando raízes, de que aquela terra fazia parte de sua história.

Todos estes detalhes, o túmulo do avô, a relação que criou com Laurent e Isabelle e com uma comunidade inteira de sobreviventes, foi ligando o Daryl àquela terra, rompendo a barreira da sua solidão e deslocamento. Só que ele ainda pretende voltar para os EUA em busca da Carol e a temporada termina com este dilema entre ir ou ficar.

E a Carol também não vai ficar esperando passivamente por ele. No finalzinho vemos que ela também está buscando pistas do paradeiro do Daryl, de modo que na próxima temporada os dois devem seguir um em busca do outro. Meu palpite é que a Isabelle vai acabar morrendo, pois é a maneira mais comum dos roteiristas resolverem casos assim em que alguém está dividido entre duas pessoas.

Bom, o Daryl se manteve fiel à Carol o tempo todo, mas a Isabelle certamente está a fim dele. Convenhamos que não tem como comparar a Carol com a Isabelle, pois a relação de Daryl e Carol tem um longo e sólido desenvolvimento. A Isabelle vai acabar saindo do caminho de alguma forma. 

Mas aí tem o garoto e ele é importante para a jornada do Daryl, pois é o filho que ele não pode abandonar para não repetir os erros do seu pai. Em sua catarse, o Daryl vai dar a Laurent o cuidado que ele próprio não teve. Então no final deve se estabelecer esta família feita pelo Daryl, Carol e Laurent, enquanto a Isabelle vai sair de cena. Veremos.

The Walking Dead: The Ones Who Live (2024)

Por fim, temos The Ones Who Live (2024) que traz o núcleo da franquia, o casal Rick Grimes (Andrew Lincoln) e Michonne (Dani Gurira). O mundo pós-apocalíptico está sendo dominado pela organização Civic Republic Military e Rick é capturado e recrutado por eles. Enquanto trabalha para a CRM ele só pensa em voltar para a Michonne. Quando os dois pombinhos se reencontram, lutam para fugir das garras do CRM. A história fecha seu ciclo no fim da primeira temporada e deve parar por aí.

(06,07,2020; 11,05,2024)

Palavras-chave:

AMC, Andrew Lincoln, Channing Powell, Dani Gurira, Dave Erickson, David Zabel, Eli Jorné, Frank Darabont, Image Comics, Jeffrey Dean Morgan, Lauren Cohan, Matthew Negrete, Melissa McBride, Norman Reedus, Robert Kirkman, Scott M. Gimple, Terry Crews

Tao

Para ser grande é preciso primeiro apequenar-se. 
Para ver o todo deve-se desviar o olhar da parte. 
Ver a floresta além de apenas uma árvore. 
Todavia não é preciso o indivíduo anular-se. 
Encontre um equilíbrio, a delicada arte
De conciliar tolice e sabedoria, riso e seriedade.
Devo fazer o ajuste fino, calibrar a engrenagem.

(03,05,2024)

Falar pouco, escrever muito

Entre 2007 e 2008 eu tive um câncer (linfoma). Fiz tanto quimioterapia quanto radioterapia e, como o tumor se concentrava na região do mediastino, a radioterapia foi direcionada para o tórax. O tumor foi eliminado, mas a radiação deixou seus danos colaterais nos meus pulmões, uma grande fibrose, que basicamente é uma cicatriz no órgão.

Tenho cicatrizes dentro de mim. Agora não só figurativamente, mas também literalmente. Como era de se esperar, esta fibrose prejudicou meu fôlego, algo que venho perdendo a cada ano. Já não tenho o fôlego de uma pessoa saudável e facilmente me canso. Caminhar um quarteirão agora equivale a correr, em termos de demanda respiratória. Já não consigo encher um balão de festa. Grandes esforços facilmente me deixam ofegante e o mais curioso é que algo que me exige bastante fôlego é falar.

A gente nunca tem noção de como o simples ato de falar exige uma boa quantidade de ar dos pulmões. Agora eu sei por experiência própria sobre isto, pois falar é algo que me cansa bastante. Uma frase basta para me deixar com a sensação de sufocamento e a necessidade de tomar fôlego. Agora preciso viver calculando meu uso do ar que respiro, sempre me mantendo em um modo de economia, um modo zen, respirando devagar, evitando coisas que demandam muito ar. Falar para mim agora é um luxo, algo caro e que preciso economizar.

Quando criança eu era muito tagarela. Na escola professores e coleguinhas perdiam a paciência comigo pelo tanto que eu falava. Em casa os parentes se irritavam quando assistiam um filme e eu ficava comentando cada cena. Eu falava pelos cotovelos.

Com o passar dos anos, porém, aconteceu uma metamorfose. Fui me tornando mais e mais lacônico, conciso, de poucas palavras, ao mesmo tempo em que migrei minha necessidade de verbalização para a escrita. Eis que surge a hipergrafia. 

Quando adquiri a fibrose, as consequências não foram sentidas de imediato, pois na época eu dava aulas, o que obviamente exigia bastante da fala, e consegui fazer isto ainda por algum tempo, mas ano após ano a minha capacidade respiratória foi decaindo e a fala foi se tornando um recurso escasso que eu precisava economizar.

Confesso que me senti bem melhor assim. Sinto-me muito mais satisfeito em expressar os pensamentos pela escrita e não parece que perdi muita coisa ao ser privado da liberdade para falar. Ainda posso falar, mas é desgastante, cansativo, desconfortável. É uma ação que me cobra um preço caro em termos de fôlego, de modo que, ao evitar a fala, estou literalmente poupando fôlego.

"Torna-te quem tu és", dizia Nietzsche. Eis o que tenho me tornado: ao mesmo tempo lacônico e hipergráfico; escasso na fala e abundante na escrita.

(12,05,2024)

Vampiros psíquicos

Hypnosis; Sascha Schneider (1904)

Vampiros psíquicos não se satisfazem apenas com emoções amenas. Para eles a simples simpatia é insossa e mesmo as amizades precisam ser temperadas com sentimentos amargos. Logo, vivem a provocar os outros. Tentam causar raiva, desgosto, inveja, ciúmes, decepções, contrariedades as mais diversas, a fim de alimentarem-se dos sentimentos negativos que incutem nos outros, como uma aranha que injeta toxinas na sua presa antes de devorá-la. Apenas afaste-se dos tais. Afaste-se. Aqueça-se no sol da autoestima, pois eles não suportam o sol.

(13,05,2024) 

Palavras-chave:

Sascha Schneider

Ash, um sci-fi genérico e insosso

Ash (2025)

O sci-fi costuma ser o gênero de filme mais caro, afinal gasta-se uma fortuna em CGI. Isto não quer dizer, porém, que não é possível se fazer sci-fi com baixíssimo orçamento, e um bom exemplo disto é Blood Machines (2019), um média metragem que foi literalmente feito em uma garagem e é sensacional.

A iluminação neon noir de Blood Machines, combinada com uma trilha sonora eletrônica, é uma fórmula que foi também repetida em outro filme igualmente indie e de baixo orçamento, Ash (2025). A diferença é que Ash é como uma comida que só tem beleza, mas é totalmente insossa.

A trama de Ash é genérica (astronautas tentam terraformar outro planeta e, advinha só, lá tem um alien gosmento que começa a invadir os corpos dos humanos), o ritmo da história é moroso, a performance dos atores é fraca (convenhamos, a atuação da Elza González é apática e os sentimentos que ela tenta passar são pouco convincentes) e a trilha sonora também soa como uma playlist genérica de música eletrônica.

E olha que a mente por traz desse filme é um compositor, o novato Flying Lotus, que compôs a trilha sonora do próprio filme. Não à toa ambos, o filme e a música, têm a mesma qualidade genérica. Não tenho prazer em desmerecer assim o trabalho artístico de alguém, mas essa é a impressão sincera que tive. Talvez até pelo fato de eu ter assistido Blood Machines recentemente, meu paladar ficou muito exigente. A comparação entre os dois filmes é inevitável e Ash fica muito atrás. 

Ash é do studio indie XYZ Films, o mesmo que produziu o sci-fi Subservience (2024) no ano anterior, um filme bem decente, aliás.

Palavras-chave:

Amazon, Elza González, Flying Lotus, MGM, XYZ Films

Inside, um thriller claustrofóbico com Willem Dafoe

Inside (2023)

O monólogo é um tipo de filme ideal para produções independentes e diretores iniciantes. Geralmente o cenário é pequeno e a folha de pagamento de atores é bem enxuta, já que só existe um protagonista e quando muito alguns poucos figurantes. Todavia, para algo assim dar certo é preciso uma história realmente boa e o ator solitário terá de carregar o filme das costas. É o que acontece em Inside (2023). O filme consegue acertar essa fórmula.

Basicamente a história envolve um ladrão chamado Nemo (Willem Dafoe) que invade a cobertura chique de um edifício em Manhattan a fim de roubar uns quadros do bizarro e valioso artista austríaco Egon Schiele, aproveitando que o dono do apartamento está viajando.

O local tem uma segurança automática reforçada e que apresenta algumas falhas no sistema, de modo que Nemo fica enclausurado nesse castelo moderno, sem contato com o mundo exterior, incapaz de pedir ajuda.

Inside (2023)

Enquanto tenta desparafusar uma claraboia (tarefa que leva vários dias, pois ele não tem nenhuma ferramenta e tem que se virar como pode), passa por vários apertos. O termostato automático ora deixa o local muito quente, ora muito frio; a comida na geladeira logo acaba, a única água que resta é a que jorra de um aspersor automático que uma vez ao dia é acionado para regar um pequeno jardim.

Desta forma, Nemo se encontra em uma irônica situação, pois, apesar de estar em uma cobertura de luxo, tem uma vida de miséria ali, passando fome, frio, sede e calor, aos poucos enlouquecendo com aquela experiência claustrofóbica.

A bizarra aventura de sobrevivência de Nemo naquele lugar fica ainda mais esquisita à medida em que ele contempla as pinturas de Egon e passa o tempo lendo The Marriage of Heaven and Hell, do místico e enigmático William Blake.

O filme é produto de três studios indies: o grego Heretic Films, o alemão Schiwago Film e o belga A Private View, com direção do iniciante Vasilis Katsoupis, que enfia sem vaselina (eu não podia perder esse trocadilho) no espectador um show agoniante. O Willem Dafoe, com seu carisma grotesco, consegue carregar o filme nas costas.

Definitivamente não é um filme para qualquer um. Muitos podem se sentir desconfortáveis e não gostar do longa por causa disso. Quanto a mim, achei-o bem envolvente e, como diria o meme: "É Dentro".

É Dentro

Palavras-chave:

Ben Hopkins, Egon Schiele, Focus Features, Heretic Films, Schiwago Film, Vasilis Katsoupis, Willem Dafoe, William Blake