Neollogia
Cogitações e quejandas quimeras 🧙‍♂️
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As várias versões do Pinguim

Os vilões clássicos do Batman são pitorescos, até mesmo cômicos; com uma aparência chamativa, colorida, circense, contrastando com o visual demasiado sério e nada colorido do Batman. Coringa, Charada e Pinguim são os maiores exemplos disto. No caso do Pinguim, ainda se acrescenta o fato dele quase ser um personagem de fábula, um animal humanoide.

Burgess Meredith as Penguin

Burgess Meredith as Penguin

Burgess Meredith as Penguin

O primeiro Pinguim em live action foi interpretado por Burgess Meredith na famosa série do Batman de Adam West (1966). Ele captou o espírito do personagem, uma espécie de brega chique, um gangster que gosta de ostentar uma aparência de magnata que acaba sendo caricata, com cartola, guarda-chuva/bengala, monóculo e um cigarro com piteira. 

Curiosamente, o ator passou a adotar uma espécie de tique em que ele fala "quack", como um pato, e segundo o ator ele fez isto para disfarçar a tosse provocada pelo cigarro.

Danny DeVito as Penguin

Michelle Pfeiffer and Danny DeVito as Penguin and Catwoman

Danny DeVito as Penguin

Em Batman Returns (1992) tivemos o Pinguim interpretado pelo quase anão Danny DeVito, que é até hoje o mais lembrado e também foi o mais ousado em sua aparência, pois ele beirava algo não humano, uma espécie de goblin gordo. Sendo uma versão com o toque do Tim Burton, obviamente ele era mais sombrio, com olhos fundos e uma expressão séria e assustadora. Eu não diria que é um Pinguim fiel ao original, mas de toda forma ele deixou sua marca.

Robin Lord Taylor as Penguin

Então veio a série Gotham (2014-2019), que abordou o período em que Bruce Wayne ainda era um adolescente. Robin Lord Taylor interpreta um Pinguim mais jovem, magro, fisicamente nada parecido com a imagem estabelecida do personagem, mas ele manteve a caminhada claudicante e ocasionalmente o guarda-chuva.

Na verdade este Pinguim foi interessante e bem mais profundo que a versão bidimensional clássica, pois vemos seu perturbado e um tanto quanto edipiano relacionamento com a mãe, uma mãe narcisista devoradora, que manipula a cabeça do filho. Ela claramente é o motivo dele ser tão obcecado por poder e ser maquiavélico, usando quaisquer meios para atingir esse fim. 

Por fim, chegamos à versão mais recente, o primeiro Pinguim a ganhar uma série própria, a ser o grande protagonista do show. The Penguim (2024) é um spin off do mesmo universo de The Batman (2022), criado por Matt Reeves.

A proposta de Reeves é criar um universo próprio da DC, particularmente do Batman, mais pé no chão, sem superpoderes, sem maravilhas tecnológicas. O Batman está em início de carreira, seu Batmóvel é basicamente uma espécie de muscle car dos anos 70. Curiosamente a Gotham do filme parece existir em nosso tempo, já que as pessoas usam smartphone.

O grande vilão do filme foi o Charada e também havia o Falcone como outro antagonista do Batman, mas quem roubou a cena foi um terceiro antagonista, o Pinguim, interpretado pelo Colin Farrell, que ficou irreconhecível debaixo de um monte de maquiagem e implantes no rosto. A melhor cena do filme é quando o Batman persegue o Pinguim na estrada, dois loucos correndo na contramão do trânsito.

Colin Farrell as Penguin

Colin Farrell as Penguin

Visualmente, este Pinguim ficou bem realista e convincente. Não é caricato como as versões clássicas, mas mantém a estranheza. Ele é um cara esquisito, aleijado de uma perna. Farrell inventou uma maneira de mancar que passa uma impressão de peso e desconforto, pois o pé deformado do Pinguim faz do ato de andar uma tarefa dolorosa.

Assim como na série Gotham, aqui também vemos a relação dele com a mãe controladora, o que estabelece o motivo dele ser o que é. Astuto e maquiavélico, ele manipula as pessoas, trai, mata e coloca uns contra os outros a fim de alcançar seu objetivo de virar um chefão da máfia. Ao mesmo tempo ele tem um pouquinho de coração mole, o que se nota no fato dele ter poupado a vida do garoto que tentou roubar seu carro e até o adotou como pupilo.

O primeiro episódio tem um roteiro bem amarradinho. Já no começo Oz (apelido para Oswald Cobb, o Pinguim) encontra o herdeiro de Falcone, Alberto, que em meio à conversa mostra o anel que está usando e se gaba de que ele pertencia a outro mafioso, Salvatore Maroni. O anel foi tomado de Maroni por Falcone e, após a morte deste, foi herdado por Alberto.

Este anel funciona como uma perfeita arma de Chekhov, pois, após matar Alberto, Oz fica com o anel e algum tempo depois ele visita Maroni na prisão, entregando a ele o anel, o que deixa o mafioso intrigado. Por fim, Oz arma uma cena em que Sofia, filha de Falconi, vê o corpo de seu irmão Alberto e ele está sem um dedo, o dedo que usava o anel. A ideia é fazer Sofia pensar que Maroni matou Alberto como vingança e de troféu pegou de volta seu anel que havia sido primeiramente tomado por Falconi.

Toda a trama do primeiro episódio fica assim bem amarrada em torno deste anel. Só isso já mostra que a série promete ter um roteiro de qualidade.

A minissérie começou agora em setembro de 2024 e vai liberar os episódios um a um a cada domingo, até novembro. De toda forma, já no primeiro episódio posso constatar a qualidade da série e a ótima performance do Colin Farrell que realmente se entregou ao personagem.

(22,09,2024)

Palavras-chave:

Burgess Meredith, Danny DeVito, DC Comics, Matt Reeves, Robin Lord Taylor, Tim Burton

Tristeza

Como tristeza no café da manhã.
Já estou tão acostumado a ela
que sentiria falta se ela não existisse.
Sim, a tristeza já se me tornou um vício,
ou melhor, ela é parte do meu organismo.
Eu metabolizo a tristeza, eu a respiro.
Ela corre em minhas veias com seu ritmo.
E, como um inusitado enigma,
ela me nutre e me sustenta a vida.

(09,08,2024)

The Watchers, o primeiro thriller da filha do Shyamalan

The Watchers (2024)

M. Night Shyamalan é um diretor já bastante consagrado no cinema, conhecido por filmes como O Sexto Sentido (1999), Corpo Fechado (2000) e tantos outros. Casado desde 1993 com Bhavna Vaswani, tem três filhas (Saleka, Ishana, Shivani) e uma delas, a Ishana, está enveredando pela carreira do pai.

No filme Old (2021) ela atuou como assistente de direção, basicamente sendo uma aprendiz do próprio pai que dirigiu a obra. Já em The Watchers (2024) ela finalmente assumiu a direção de um longa.

É inevitável fazer comparações, já que o sobrenome Shyamalan virou uma espécie de marca, uma assinatura. O filme adota esta assinatura, tem o suspense, o mistério, o esperado plot twist no final, mas a verdade é que The Watchers não é muito interessante.

Os personagens não nos cativam. Nós pouco nos importamos com eles. Até mesmo a Dakota Fanning parece meio insossa e pouco convincente no seu drama pessoal. As criaturas misteriosas também não parecem nos impressionar. Mas enfim, podemos dar um desconto devido ao fato de ser a obra de uma diretora e roteirista iniciante.

O roteiro é baseado no livro homônimo de autoria do escritor irlandês A. M. Shine. Não li o livro, mas ele é bem avaliado no Goodreads, com uma pontuação na média de 4/5, enquanto o filme no IMDb está com nota 5,7/10.

Apesar de ser um filme bem mediano, ainda há algo de qualidade que se salva nele, a trilha sonora composta por ninguém menos que Abel Korzeniowski, um compositor polonês que admiro desde Penny Deadful (2014-2016).

Dakota Fanning in The Watchers (2024)

(15,09,2024)

Palavras-chave:

A. M. Shine, Abel Korzeniowski, Dakota Fanning, Ishana Shyamalan, M. Night Shyamalan, Warner

Hard Reset, meu primeiro FPS cyberpunk

Hard Reset (2011)

Estes dias, vasculhando minha biblioteca da Steam, me deparei com um jogo antigo, Hard Reset (2011). Acabei despertando boas lembranças.

Como sempre tive um PC fraquinho e nunca tive um console (até 2020), não tive experiência com jogos triple A, com gráficos ricos e realistas. Eu era mais de jogar MMORPGs como Tibia e Runescape, até que em 2016 criei uma conta na Steam e comecei a adquirir alguns joguinhos. Um deles foi Hard Reset, que na época estava em uma promoção por 3 Reais.

Esta foi minha primeira experiência com um FPS cyberpunk, antes de Deus Ex, de Half Life, etc. É um jogo pequeno, de apenas 4,5 GB, o que é bem pouco comparado ao padrão de qualquer FPS atual que vai de 30 a 50 GB (Paladins, Overwatch) e em alguns casos até 100 ou mais (Destiny 2, Halo Infinite). 

Para quem nunca jogou nada do tipo antes, Hard Reset me pareceu muito belo e detalhista, com uma agradável ambientação cyberpunk, carros voando no céu do cenário, dirigíveis passando entre os prédios a exibir anúncios em uma tela neon, muitos cartazes e pichações nas ruas e becos, o que me ocupava bastante, pois eu fazia questão de printar tudo. Estava encantado.

A jogabilidade nada deixava a desejar. Variedade de armas futuristas e upgrades, uma historinha relativamente interessante e alguns bosses que chamavam atenção, como o gigante Atlas. Até então eu nunca tinha enfrentado um NPC tão gigantesco em um jogo, então obviamente fiquei impressionado.

Saudosos tempos da época da imaturidade, quando eu tinha experimentado poucos jogos e tudo era uma grande novidade. Hoje em dia, após conhecer uma boa variedade de jogos, é mais difícil algo me impressionar. É natural que seja assim, afinal com o tempo vamos ficando mais seletivos e exigentes. De toda forma, Hard Reset permanece em minha memória como uma agradável lembrança.

(16,02,2023)

Estes dias joguei novamente do começo ao fim, por amor à nostalgia e também porque queria ver como ficavam os gráficos, agora que tenho um PC melhorzinho. Quando joguei em 2016, meu PC nem mesmo tinha placa de vídeo e se virou como pôde (ou eu já tinha minha primeira placa, uma GT 730 - não lembro ao certo agora se já tinha, mas de toda forma o PC era bem fraquinho com ou sem GPU), mas obviamente tive que jogar com os gráficos no mínimo. Agora com uma RTX 2060 Super pude jogar no ultra e usufruir o máximo do jogo.

Mesmo oito anos depois, continuo achando o jogo divertido e até mesmo encantador em seu cenário. Olhar para as paredes cheias de pichações, os neons e outdoors com propagandas futuristas e os carros voando no céu é algo bem imersivo. Também continuo achando divertido o uso das armas, principalmente a Smartgun que atravessa paredes. 

Parece que tenho uma afinidade com studios poloneses, pois até agora só tive boas experiências com jogos desde país. O Hard Reset é da Flying Wild Hog que entra para minha lista de studios poloneses queridinhos, junto da 11 Bit¹ e da CD Projekt Red.

Vou deixar aqui alguns prints e artes conceituais.

Hard Reset (2011)

Hard Reset (2011)

Hard Reset (2011)

Hard Reset (2011)

Hard Reset (2011)

Hard Reset (2011)

Hard Reset (2011)

Hard Reset (2011)

Hard Reset (2011)

(15,09,2024)

Notas:


Palavras-chave:

Flying Wild Hog

Pets clonados, dois Schwarzas e namoradas virtuais em O Sexto Dia

The 6th Day (2000)

Nos anos 90, principalmente em meados dos anos 2000, havia uma grande empolgação no cinema quanto ao sci-fi. Eu diria até que o sci-fi futurista naquela época era algo bem mais "normie", bem mais Sessão da Tarde, enquanto hoje ele é algo mais de nicho e parece haver até um desinteresse do grande público com relação a avanços tecnológicos e futurices.

Talvez devido ao fato de já vivermos imersos na tecnologia, de levarmos um computador em nossos bolsos e que usamos rotineiramente de forma trivial, a tecnologia já não encanta tanto e há até mesmo uma certa fadiga dela. Já nos anos 90 nós vivíamos fascinados com avanços tecnológicos. 

Nos anos 90 tivemos Robocop 2 (1990), Terminator 2 (1991), Soldado Universal (1992), O Demolidor (1993), Stargate (1994), Independence Day (1996), Contato (1997), Impacto Profundo (1998), Armageddon (1998) e, coroando o gênero sci-fi, Matrix (1999). Isto só para ficar em alguns poucos exemplos.

Dolly and Ian Wilmut
Dolly e seu criador Ian Wilmut.

A clonagem da ovelha Dolly Guaraná em 1997 foi assunto em todos os jornais e essa ovelha se tornou bem conhecida do povão. E aqui chegamos ao filme The 6th Day (2000), que já começa abordando a evolução da clonagem, começando pela famosa Dolly, até chegar em um futuro onde a clonagem humana se tornou possível, mas foi barrada por uma lei, a lei do Sexto Dia (uma referência ao sexto dia da criação no Gênesis, quando Deus criou o homem).

A história se passa em 2015 e nos primeiros vinte minutos já nos apresenta uma série de tecnologias futuristas como carros autônomos, geladeira inteligente que tem uma tela na porta e faz lista de compras para se reabastecer, helicóptero que pode ser pilotado por controle remoto e uma boneca robô de aparência humana, criada para ser a amiguinha das crianças, a Sim Pal.

Arnold Schwarzenegger and Sim Pal in The 6th Day (2000)

Arnold Schwarzenegger and Sim Pal in The 6th Day (2000)

Essa boneca animatrônica é bem feinha na verdade, mas isto faz parte do elemento de humor do filme. Ela aparece no começo da história e não dura muito. Também vemos uma empresa chamada RePet, que realiza a clonagem de pets. Embora a clonagem humana seja proibida, a de pets se torna bem popular.

Todas estas previsões futuristas feitas nos anos 2000 sobre o que seria o ano de 2015 não ficaram muito longe da realidade. É certo que esse 2015 do filme parece ligeiramente mais avançado que o nosso, mas hoje em dia já temos tudo isso. Temos bonecas e pets robóticos (embora ainda sejam bem caros), temos geladeira inteligente, carro autônomo e até mesmo clonagem de pets, mas ainda são excentricidades que só alguns ricos pagam. Ainda não é algo tão comum e popular como no mundo do filme. 

Jennifer Gareis in The 6th Day (2000)

Outra tecnologia apresentada foi a namorada virtual, que se apresenta na forma de um holograma que fica na casa do usuário e parece ter uma certa capacidade de realizar ações táteis, pois em uma cena vemos a namorada virtual abrindo o zíper do usuário dela.

Lyla in Spider-Man 2099

Uma representação de companheira doméstica virtual (não necessariamente para fins românticos ou sexuais) que me marcou bastante foi na primeira revista do Spider-Man 2099, lançada em 1992. O Miguel O'Hara tinha essa assistente doméstica holográfica, a Lyla, claramente inspirada na Marylin Monroe, e que era uma companheira mais presente na vida do Miguel do que sua própria namorada ou parentes.

Joi in Blade Runner 2049 (2017)

Weird Science (1985)

Saltando várias décadas, temos a Joi, de Blade Runner 2049 (2017), que de certa forma lembra a Lyla. Mas podemos voltar ainda mais no tempo para o filme Weird Science (1985), aqui conhecido como Mulher Nota 1000, em que dois nerdões criam uma namorada virtual no computador, a Lisa, e ela de alguma forma milagrosa acaba ganhando um corpo.

Maria robot in Metropolis (1927)

Esta ideia de um companheiro ou companheira robô humanoide é tão antiga quanto o cinema, pois lá em 1927 já tínhamos a robô Maria, em Metropolis.

Mas voltando ao The 6th Day, é um filme bem Schwarza, ou melhor, duplamente Schwarza, pois como ele interpreta alguém que foi clonado, temos cenas em que há dois Schwarzas na tela. Sendo a clonagem ilegal, ele é perseguido a fim de ser apagado da história, antes que a coisa se torne pública, e aí o sci-fi se transforma no típico filme de ação Sessão da Tarde. 

Com relação à inteligência artificial, limitou-se a considerá-la um programa. A tal namorada virtual é apenas uma série de scripts e nota-se que ela não tem uma independência de pensamento ou consciência, mas age e reage de maneira encenada. É diferente, por exemplo, da Joi de Blade Runner, que tem um comportamento que nos deixa em dúvida se é programado ou consciente.

O filme acertou em algo que muitos outros erram quando se trata de clonagem: o clone não é a mesma pessoa. Mesmo que herde as memórias da pessoa original, o clone é outro ser, com sua própria individualidade, sua própria alma. Por isto a imortalidade via clonagem não é possível, pois o seu clone não será você.

Supomos que a consciência está em algum lugar do cérebro. Se uma pessoa transplantar todos os seus órgãos, menos o cérebro, e mesmo que troque até de membros e de corpo, ela continuará sendo relativamente a mesma pessoa, desde que seja o mesmo cérebro.

Possivelmente no futuro poderemos clonar nossos órgãos e nosso corpo, quem sabe chegando até ao ponto de conseguirmos renovar a vida apenas trocando o cérebro para um corpo novo, mas o cérebro envelhece, se deteriora, e a clonagem de corpo não salvaria o cérebro de sua degradação. 

Por isto o mais provável é que a engenharia biológica que vai garantir a longevidade não terá a ver com clonagem, mas com regeneração celular. Algum dia vamos potencializar nossas células e nosso código genético de modo que teremos uma regeneração celular formidável, o que vai garantir uma longevidade por tempo indefinido e de maneira bem menos invasiva do que usando clones e transplantes. Mas já estou divagando.

(10,09,2024)

Palavras-chave:

Arnold Schwarzenegger, Columbia Pictures, Roger Spottiswoode

O terror da desumanização em Tusk

Tusk (2014)

O terror basicamente explora o medo da violência e, mais especificamente, o medo da dor. Ao assistir os personagens sendo mutilados, torturados, somos tomados pelo desconforto ao imaginar a dor que eles estão sentindo. Provavelmente a maioria dos filmes de terror usa a dor como o meio para assustar a audiência (além dos infames jumpscares). 

Além do tormento físico, também temos o tormento psicológico que muitas vezes é alcançado por meio da dor física. A tortura do corpo quebra a alma, leva a mente ao desespero e à loucura. Todavia o terror psicológico recorre menos à dor e à violência física do que o típico terror gore e não à toa costuma envolver um roteiro mais refinado, que busca explorar as sutilezas da alma humana.

Seja na dor física ou psicológica, a forma suprema do terror está em seu aspecto ontológico, quando ele leva os personagens, as vítimas, ao estado definitivo de violência: a desumanização.

Para um humano, nada é mais aterrorizante que a destruição de sua humanidade, quando ele é reduzido a algo subumano, é reificado¹ (ou coisificado, num português moderno).

Tusk (2014) aborda justamente este aspecto do terror. Provavelmente há uma certa inspiração no já clássico A Centopeia Humana (2009), onde as vítimas são coisificadas e transformadas em grotescas centopeias. Em Tusk, a vítima vira uma morsa.

Este filme, escrito e dirigido pelo Kevin Smith, é uma tragicomédia. Em muitos momentos não se leva a sério, mas ao mesmo tempo aprofunda-se neste drama terrível de uma pessoa que é privada de sua humanidade, reduzida a uma besta.

O "cientista maluco" nesta história usa o pseudônimo Howard Howe. Ele próprio é alguém que perdeu sua humanidade ao conhecer o pior do ser humano. Sendo desde criança vítima de diversos abusos, ele conheceu a barbárie, chegando à conclusão que a barbárie tem rosto humano, que os humanos são os monstros neste mundo.

Sabemos certamente que humanos cometem coisas crudelíssimas, mas este é apenas um aspecto de nossa realidade. O problema de Howard foi ter conhecido apenas a barbárie, sem ter conhecido a civilização e as almas boas deste mundo. Não se pode generalizar o todo com base apenas na parte. A humanidade é mista, nela misturam-se barbárie e civilização. Nossa eterna luta é para impedir que a barbárie supere a civilização.

Justin Long and Michael Parks in Tusk (2014)
Quando seu único amigo é uma morsa.

Mas voltando ao filme, na mente perturbada de Howard, os humanos são os monstros e ele sempre viveu com esta concepção. Certa vez ele sofreu um naufrágio e foi meio que resgatado por uma morsa. Este momento para ele foi uma epifania. Pela primeira vez ele experimentou a bondade e esta não veio de um humano, mas de uma morsa. Ali ele completou a sua deturpada visão de mundo: humanos são monstros e a salvação dos humanos seria remover deles a humanidade, transformando-os em outra coisa. No caso, em uma morsa.

Assim vemos o protagonista e vítima, Wallace, sendo cirurgicamente transformado em uma morsa, inclusive tendo a língua removida para que só possa se comunicar com grunhidos. A cirurgia envolve amputações e enxertos, mas Howard faz tudo isto usando sedativos e anestésicos. 

Ou seja, neste terror, o vilão não inflige dor. Ao contrário, ele faz questão de poupar a dor da vítima, pois, na cabeça perturbada dele, ele não está fazendo o mal. Ele está salvando Wallace, removendo dele a humanidade. Pois é, vilão com "boas intenções" nunca dá certo. 

O fato é que o terror e o sofrimento aqui não tem nada a ver com dor, apesar de haver uma violência brutal sobre o corpo da vítima. O terror puro está na sua desumanização. De tal forma esta experiência afeta o psicológico de Wallace, que ele simplesmente abandona a humanidade e se convence de que é uma morsa.

A ideia deste filme surgiu como uma piada. Kevin Smith conversava com seu amigo Scott Mosier no podcast SMocast e ficaram devaneando e caindo na gargalhada com a ideia de alguém viver vestido como uma morsa. A ideia escalou a ponto de virar um filme. Apesar da ideia interessante, o filme foi um grande fracasso. Foi uma produção modesta, feita com apenas 3 milhões de dólares, mas não arrecadou nem 2 milhões na bilheteria. Convenhamos que é um tipo de humor/terror para poucos. 

Johnny Depp, Haley Joel Osment and Genesis Rodriguez in Tusk (2014)
Johhny Depp está irreconhecível.

Harley Quinn Smith and Lily-Rose Depp in Tusk (2014)

Detalhe que no elenco temos Johnny Depp e sua filha, Lily-Rose. Ambos inclusive interagem em uma cena, pois Depp é o detetive que investiga o caso e Lily é uma balconista que viu Wallace antes dele desaparecer. A outra balconista é a própria filha do Kevin Smith, a Harley Quinn Smith. Sim, o Kevinho deu o nome da Harley Quinn para sua filha. Ah sim, também temos o Haley Joel Osment, o queridinho de Hollywood nos anos 2000, com filmes como O Sexto Sentido (1999), A Corrente do Bem (2000) e Inteligência Artificial (2001). 

Haley Joel Osment, Tusk
O multiverso do Haley Joel Osment.

(08,09,2024)

Notas:

1: Notinha etimológica. Em latim, a palavra "res" significa "coisa", tanto que daí vem a palavra "república" (a coisa pública). E daí também vem o verbo "reificar" (transformar ou tratar algo como objeto, como coisa). Obviamente esta palavra caiu em desuso, vencida por sua versão mais coloquial "coisificar", mas não está de todo morta e usá-la-ei sempre que quiser (assim como as mesóclises).

Palavras-chave:

A24, Johnny Depp, Genesis Rodriguez, Haley Joel Osment, Justin Long, Kevin Smith, Lily-Rose Depp, Michael Parks