Neollogia
Cogitações e quejandas quimeras 🧙‍♂️
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1984

1984 (1984)

George Orwell publicou seu distópico romance 1984 em 1949 e obviamente teve muita inspiração no surto de totalitarismo que assolou o mundo nos tempos da Segunda Guerra, especialmente em se tratando da Alemanha nazista e da União Soviética.

E note-se que Orwell considerava-se um socialista, mas ele era moderado o suficiente para não simpatizar com extremos em qualquer espectro, de modo que foi capaz de enxergar o extremismo do stalinismo. 

Na obra ele descreve um mundo multipolar dividido em três superpotências que permanecem em uma guerra perpétua: Oceania, Eurásia e Lestásia. A história é focada na Oceania, que basicamente é a porção de língua inglesa no mundo e o protagonista Winston é um reles proletário na Pista de Pouso N° 1 (outrora Grã-Bretanha). Quem governa toda a Oceania é o chamado Partido, que é adepto da ideologia "Ingsoc" (Socialismo Inglês).

O contraste entre a narrativa do Partido e a realidade é gritante. Nas notícias há uma abundância de dados otimistas: a produção de alimentos está sempre aumentando, a taxa de doenças e mortalidade diminuindo, a alfabetização, emprego, condições de vida, tudo está cada dia melhor segundo o jornal que vai lançando estatísticas absurdamente positivas. 

A realidade, porém, mostra o contrário destas palavras. O mundo parece mergulhado na miséria. As ruas, casas, cada objeto, uma lâmpada, uma pia quebrada, uma parede envelhecida. Tudo é sujo e desgastado. As coisas mais básicas são difíceis de se ter. Winston passa vários dias com a mesma lâmina de barbear velha, porque até uma simples gilete é escassa neste mundo decadente.

Suzanna Hamilton in 1984 (1984)
A histeria coletiva dos Dois Minutos de Ódio.

As pessoas mais velhas, como o próprio Winston, ainda demonstram traços de uma mente hesitante, tentada à "crimidéia". Elas obedecem por medo. Já as crianças se mostram perfeitamente doutrinadas. Nelas a lavagem cerebral, a doutrinação, cresce como uma semente bem plantada. Elas olham para os adultos com ar de julgamento e pela simples expressão facial conseguem identificar um "crimepensador". Elas denunciam os pais ao governo sem hesitar.

Por meio de um intenso sistema de propaganda, a população é saturada com mentiras e uma narrativa que vende a ideia de que vivem num governo perfeito e justo que luta contra monstros. O líder do movimento rebelde, Emmanuel Goldstein, é considerado o grande inimigo público e quando ele aparece na tela tem início uma histeria coletiva de gritaria e ódio, chamada de "Dois Minutos de Ódio". É um momento em que as massas extravasam seus sentimentos negativos em um espantalho, um inimigo forjado. Desta forma o ódio natural do ser humano é direcionado de uma forma controlada, evitando que sobre algum ódio do povo pelo governo.

Curioso que hoje em dia, por meio das redes sociais, as pessoas também extravasam o ódio nos alvos mais triviais, atacando uns aos outros pelos motivos mais bobos, formando times polarizados em torno de política, religião ou até mesmo entretenimento. E assim desperdiçam suas energias que poderiam ser focadas em problemas realmente dignos de atenção.

Winston era um rebelde e, apesar de trabalhar no Ministério da Verdade, onde recebia ordens para reeditar notícias, deturpando os fatos, em casa ele cultivava discretamente seus pensamentos questionadores em um diário. Então ele conhece Julia que era membro de um movimento de resistência, de modo que ela catalisou a saída dele daquele estado de escravidão mental.

Só que a jornada de Winston rumo à liberdade de pensamento também o levou para o inferno, pois ele acaba sendo descoberto, condenado e torturado pelo Partido. Até mesmo seu romance com Julia, que parecia ser o amor mais intenso e cheio de cumplicidade, foi posto à prova, pois, diante da mais terrível tortura, Winston deseja que Julia estivesse sofrendo em seu lugar.

1984 (1956)

A primeira adaptação cinematográfica do livro veio em 1956, num filme dirigido por Michael Anderson. Todavia, a versão mais famosa veio no próprio ano de 1984, dirigida por Michael Radford. A trilha sonora contou com a música Julia, do grupo Eurythmics, que transmite de forma marcante o clima angustiante daquele mundo distópico e do romance trágico entre Winston e Julia. 

John Hurt and Suzanna Hamilton in 1984 (1984)

John Hurt and Suzanna Hamilton in 1984 (1984)

Pessoas da esquerda dirão que 1984 é sobre um governo de direita, pessoas da direita dirão que é sobre um governo de esquerda. Numa coisa ambas concordam: 1984 é sobre o governo, ou melhor, sobre o poder totalitário.

O totalitarismo utiliza de várias artimanhas para se instalar nas entranhas de uma sociedade e na própria consciência do povo: revisionismo histórico, literalmente reescrevendo e apagando fatos; a supressão da liberdade de pensamento e do individualismo, usando o coletivismo como uma "causa nobre" pela qual é considerado válido perseguir e anular qualquer manifestação de individualidade; o único indivíduo que existe é o grande líder, o Grande Irmão, este digno de culto e obediência fanática.

Bob Flag in 1984 (1984)
O rosto dado ao Grande Irmão é do ator Bob Flag.

No livro, o Big Brother tem uma presença ubíqua, pois está em todas as teletelas (nome que Orwell dá a uma tecnologia futura, uma espécie de evolução computadorizada da televisão - basicamente ele previu as nossas atuais telas digitais), olhando a todos. Ele sempre aparece como um rosto sério e de olhar fixo e julgador. Não é possível saber se é um ser humano real ou uma lenda inventada pelo Partido. Talvez até seja uma pura inteligência artificial.

Aliás, a presença da tecnologia no mundo de 1984 é bem diferente da maioria das obras de sci-fi. Geralmente o sci-fi imagina um futuro onde a tecnologia se mostra avançada em todos os aspectos da vida. Até mesmo no gênero cyberpunk (onde costuma haver um abismo entre os muito ricos e a massa pobre), os pobres desfrutam de várias tecnologias futuristas, implantes, acesso a computadores, etc. 

Já em 1984 a massa tem uma vida analógica. A única tecnologia avançada a que têm acesso são as teletelas, mas de forma passiva, apenas para receber a doutrinação do Partido. Para as massas não existe internet, acesso a informação ou qualquer dispositivo que melhores suas vidas. Ora, é difícil até conseguir uma lâmina de barbear nova, quanto mais um computador.

Quem detém o acesso às mais avançadas tecnologias é o Partido e mesmo lá não parece haver grandes inovações além do sistema de vigilância computadorizado. Parece que, neste mundo cheio de miséria e eternamente consumido pelas guerras que gastam boa parte dos recursos das nações, a única tecnologia avançada que possuem é de fato o sistema de vigilância que hoje podemos entender como algum tipo de supercomputador com olhos e ouvidos em toda parte por meio das teletelas. Esta IA ocupa-se exclusivamente em produzir propaganda e doutrinação e observar os comportamentos das pessoas para identificar traços de rebeldia.

Orwell desenvolveu uma série de terminologias que fazem parte da cultura deste mundo totalitário, como "crimideia", "novilíngua" e "duplipensar", termos que se consagraram e até hoje é comum o seu uso quando alguém pretende criticar atitudes de políticos ou instituições que estejam flertando com o totalitarismo.

Richard Burton and John Hurt in 1984 (1984)

O poder é acima de tudo mental, ele subjuga a mente dos indivíduos, ele destrói a autonomia humana. 

Como um rebelde, Winston poderia simplesmente ter sido morto, mas o Partido não queria matá-lo sem antes subjugá-lo em sua essência, em sua alma. Ele é torturado física e psicologicamente até ao ponto de não apenas dizer, mas piamente acreditar que 2+2=5. Isto porque o poder não se satisfaz apenas com a dominação dos recursos de uma sociedade, ele deseja as mentes de cada pessoa, ele quer consumir a humanidade de cada um, reduzindo todos a uma massa informe e acerebrada.

Sendo este livro uma alegoria, o poder tirânico exercido pelo Partido e pelo Big Brother pode ter aplicações políticas, pode se referir a Hitler, a Stalin ou qualquer outro grande tirano, e também pode se referir a um relacionamento abusivo, um marido agressor, uma esposa possessiva, pais narcisistas que tiranizam seus filhos, que querem sugar deles toda a liberdade de agir e pensar. 1984 é sobre fanatismo e controle, qualquer que seja, político, religioso ou ideológico.

2+2=5 é uma expressão memorável e bastante emblemática do livro, pois representa este esforço em dominar as mentes e, por consequência, a realidade. Quem molda mentes, molda a realidade. Se a essência da realidade está na consciência, no cogito ergo sum, logo, quem tem poder sobre a consciência tem poder sobre a realidade. Em sua gana por escavar mais e mais, o poder se aprofunda até chegar ao leito rochoso, ao fundamento de toda existência: a consciência.

Apesar de ter um final pessimista e aterrorizante, 1984, ao desvendar o poder, ao retirar seu véu e expor toda sua monstruosidade e suas intenções últimas, faz um diagnóstico desta doença macabra, alertando nosso sistema imunológico. A resistência ao poder se dá na mente, na formação de uma consciência robusta e emancipada.

(16,06,2024)

Palavras-chave:

George Orwell, John Hurt, Michael Anderson, Michael Radford, Suzanna Hamilton

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