É curioso que um dos personagens com a maior quantidade de filmes em toda a história do cinema nem mesmo é humano. Sim, estamos falando do Godzilla. Ele e o King Kong são os dois monstros gigantes mais famosos da cultura pop e com uma prolífica cinegrafia que chegou até o ponto do crossover, quando ambos se encontraram e trocaram uns sopapos.
Aqui, porém, pretendo dedicar especial atenção a um filme em específico, um que veio assim como quem não quer nada e acabou surpreendendo. Ouso dizer que é até agora o melhor filme de Godzilla já feito, porque possui uma abordagem bem inovadora. Eu diria que é uma espécie de dorama. Enquanto a franquia sempre seguiu o gênero do terror, da guerra, ação e sci-fi, Godzilla Minus One (2023), o 37º da vasta filmografia, optou pelo drama e por focar sua atenção no aspecto humano da história. É o mais humano de todos os filmes da franquia.
Godzilla sempre foi o protagonista dos filmes que levam seu nomes. Mesmo naqueles em que foram escaladas estrelas do cinema, como Matthew Broderick (no filme de 1998) ou Brian Cranston (2014) e Millie Bobby Brown (2021), o kaiju continuou sendo o grande protagonista da história, enquanto os humanos só orbitavam em torno dele. Em Minus One isso finalmente mudou.
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Finalmente um protagonista com o qual a gente se importa. |
Em seus primeiros frames o filme já traz o seu protagonista, um humano. Estamos em 1945, final da Segunda Guerra, e Kōichi Shikishima, um piloto kamikaze, covardemente abandona sua missão e se refugia em uma ilha com o pretexto de fazer manutenção do avião. O mecânico Tachibana constata que não tem nada de errado com o avião e deduz que Koichi é um desertor.
Kamikazes só tinham uma missão: jogar seu avião em algum navio inimigo. Quando um piloto kamikaze saía de casa, era certo que não devia voltar. Caso voltasse, seria recebido com desprezo por ter fugido da missão, uma desonra e um gesto egoísta que poderia por em risco o próprio futuro do país, pois, se vários pilotos fossem igualmente covardes, estariam contribuindo para a derrota na guerra.
Desta forma, somos apresentados a um protagonista que já começa a história como um perdedor, como um falso herói, um covarde. E a situação de Koichi só piora, pois ele tem o azar de se deparar com o jovem Godzilla. Bom, jovem, mas já um gigante devastador. O monstro invade a ilha e os mecânicos pedem que Koichi use a metralhadora do avião para tentar matar o kaiju, mas o piloto se acovarda mais uma vez, o que resulta em um massacre. Apenas ele e Tachibana sobrevivem.
De volta a Tóquio, Koichi encontra a cidade arrasada por um bombardeio americano. Descobre que seus pais morreram e no meio do caos ele acaba ajudando uma mulher com um bebê, Noriko Ōishi e Akiko. Tomado pela culpa de não ter ajudado o país, Koichi acaba adotando a mulher e a criança e passam a viver juntos. Ele arranja um emprego em um barco com a função de remover as minas marítimas, já que a guerra acabou.
Em uma destas viagens ele novamente se depara com Godzilla e desta vez pode conhecer o verdadeiro potencial do monstro, pois vê ele disparando um raio atômico em um navio de guerra, ao mesmo tempo em que sobrevive a um bombardeio dos canhões do navio. Ali ficou claro que nenhuma arma humana seria capaz de deter o bicho que estava nadando em direção a Tóquio.
Em Tóquio, um conselho de civis se reúne para por em prática um plano mirabolante: usar navios para cercar Godzilla e envolvê-lo em tanques de gás freon que, uma vez ativados, afundariam o corpo do monstro até o ponto em que ele seria esmagado pela pressão das profundezas marítimas. O papel de Koichi é atrair e distrair o gigante voando em torno dele com um avião. A fim de se redimir da culpa, Koichi tem um plano secreto: ele pretende jogar o avião equipado com uma bomba dentro da boca do Godzilla.
Desta forma, toda a trama gira em torno de uma jornada de vingança e redenção do protagonista humano. Se a princípio Koichi parece um mero covarde, ao longo da história vamos torcendo para que ele se redima. Além disto, desenvolve-se este drama familiar entre ele, Koriko e Akiko que acabam se tornando mais uma motivação. Ele gira em torno destes três grandes motivos: vingança, redenção e salvação. Vingar-se do monstro, redimir-se da culpa e salvar a família, Tóquio e até mesmo o país e o mundo inteiro, afinal estamos falando do Godzilla.
Bom notar que o filme foi produzido com apenas 15 milhões de dólares. Contou com 610 cortes contendo efeitos visuais feitos por uma equipe de apenas 35 artistas. São efeitos modestos que não se comparam ao CGI caríssimo de um Godzilla x Kong, mas são suficientes, afinal o forte do filme é a história humana, enquanto as cenas de destruição e a batalha contra o kaiju acontecem apenas em momentos climáticos.
Ao longo de sua filmografia, Godzilla já assumiu vários significados. Ele já representou o puro medo da bomba atômica e sua consequências; já carregou uma mensagem ecológica; uma força imparável da natureza; até mesmo um protetor da Terra e da própria humanidade. Agora ele aparece como um nêmesis pessoal do protagonista e um símbolo para o peso da sua culpa. Godzilla é o passado que condena Koichi, é a consequência de sua covardia. Como diz aquela frase: "agora é pessoal".
(16,06,2024)
Palavras-chave:
Minami Hamabe, Ryunosuke Kamiki, Takashi Yamazaki
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