Talvez o romance mais famoso focado na mensagem da desigualdade social seja Os Miseráveis, de Victor Hugo, que rendeu diversas adaptações no cinema e teatro. Mais recentemente tivemos um exemplo curioso na ficção científica Snowpiercer (2013), que se passa em um futuro gélido apocalíptico e a humanidade restante vive em um trem cujos vagões são separados segundo as classes sociais, dos vagões de luxo até a pura miséria.
O mesmo diretor de Snowpiercer, Bong Joon Ho, em seguida repetiria o tema do conflito de classes em seu premiado Parasita. Ele mostra de forma simbólica a problemática relação entre ricos e pobres na convivência de uma família rica com seus empregados.
Embora Parasita tenha se consagrado como o grande filme de crítica social de 2019, existe outro, lançado no mesmo ano, que também aborda o mesmo tema, só que de uma forma bem mais visceral: O Poço (El Hoyo), do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia.
O cenário é bem simples: vemos uma espécie de cela com camas e um buraco quadrado no centro. O protagonista, Goreng, acorda neste local, tendo à sua frente um colega de prisão. Logo desce uma plataforma pelo buraco, coberta por pratos e comida, porém claramente aquele banquete já foi devorado pelas pessoas nos andares de cima, sobrando apenas restos.
Assim Goreng percebe como funciona a coisa. Aquele lugar é como uma prisão vertical com centenas de andares. A plataforma desce todo dia repleta de comida que vai sendo consumida a cada andar. A conclusão é óbvia: as pessoas que estão nos andares mais altos são melhor favorecidas e, quanto mais baixo se está nesse poço, menos comida terá à disposição, os restos deixados por aqueles dos andares superiores.
Para piorar a situação, periodicamente os prisioneiros são realocados e é aí que a coisa vai ficando sinistra. Às vezes Goreng tem a sorte de acordar em andares mais altos e vê à sua disposição uma plataforma ainda repleta de comida. Em outras ocasiões ele vai parar bem no fundo, quando a plataforma chega vazia e ele simplesmente irá passar fome por semanas.
Vivendo nesse ambiente que mais parece um purgatório, Goreng literalmente conhece o fundo do poço, experiencia a miséria humana, se depara com pessoas se suicidando, praticando canibalismo; ele próprio é vítima de torturas e sofre inanição.
Quando por sorte consegue chegar ao sexto andar, toma a decisão de tentar enfrentar aquele sistema de classes. Convence seu colega a descer com ele na plataforma, administrando a distribuição de comida, de modo que as pessoas em todos os andares se alimentem igualmente.
Essa tarefa se torna bem árdua, tendo de lidar com a selvageria humana e com a incerteza. Sua mensagem funcionará? Esse esforço idealístico de mudar a ordem das coisas terá êxito? Quão fundo é o poço?
Misturando alegorias cristãs (em certo momento Goreng tem que comer um pedaço de carne humana, quase como se fosse uma hóstia) e uma espécie de ideal socialista, a mensagem do filme é bem clara desde o início: existe uma desigualdade nas condições de vida das pessoas no mundo que chega aos níveis da barbárie. Como mudar isso? Pela força? Pelo convencimento? Enviando uma mensagem aos que estão no topo?
O curioso, porém, é que Goreng, o visionário, o suposto salvador, sonha em criar um sistema mais igualitário e justo de distribuição da comida no poço, mas ele não questiona a própria existência do poço. Seu ideal de liberdade tem limite. Por que ele não pensa numa forma de fazer com que todos saiam do poço? Em vez disso, aceita estoicamente a existência daquele lugar e apenas deseja que a comida seja melhor administrada.
Ele próprio entrou no poço voluntariamente. Ele aceitou as regras do jogo, porque queria o tal "certificado". Sua noção de subversão da ordem vigente não foi ousada o suficiente a ponto de querer destruir a própria ordem. Ele não saiu da matrix, como o Neo que negociou com o Arquiteto e no fim das contas não destruiu a matrix. Uma falsa salvação.
Mensagem à parte, o fato é que O Poço é um verdadeiro terror e suspense perturbador e que você não irá esquecer.
(26,03,2020)
Em 2024 veio a sequência O Poço 2, desta vez lançada pela Netflix. Agora o lugar parece mais "civilizado", pois um grupo simplesmente decidiu impor certas regras e monitorar severamente o cumprimento delas, garantindo que a comida chegue ao máximo de andares possíveis.
Se o primeiro filme enfatiza as crueldades da barbárie, onde é cada um por si, aqui vemos também os males da civilização, quando ela se torna extremamente rígida na imposição de leis, corrompendo-se numa tirania.
A existência deste lugar bizarro e a maneira como ele funciona é tão inverossímil que é impossível não pensarmos que trata-se puramente de uma alegoria, o que abre espaço para diversas interpretações ao gosto do freguês. Pode representar o purgatório e ali as pessoas estão expiando suas culpas (afinal, por que diabos as pessoas voluntariamente vão para lá?). Pode representar a sociedade e até mesmo o capitalismo implacável (ao menos é assim que um socialista enxerga o capitalismo). Pode no fim das contas representar a própria natureza humana e sua incapacidade de conviver pacificamente, pois não importa o que se faça para tentar melhorar o poço, nada parece funcionar por muito tempo.
Por outro lado, há também uma mensagem otimista. Há uma luz no "fundo do poço". Algumas pessoas optam por abraçar o altruísmo e o amor à humanidade de tal maneira que simplesmente abdicam de toda essa disputa e descem na plataforma até o fim dos 333 andares.
Em uma situação verossímil, ali embaixo só haveria ossadas humanas, pois nunca a comida chegou ali. Quando muito, só chegaram alguns pedaços humanos quando alguém caía no poço. O fato é que é impossível viver ali embaixo, mas estranhamente existem pessoas no fundo do poço, como se elas tivessem transcendido as necessidades humanas ou talvez já estejam mortas e sejam apenas espíritos. O curioso é que o fundo do poço parece ser um lugar de paz, pois ali os humanos já superaram todos os seus problemas.
(12,10,2024)
Palavras-chave:
Bong Joon Ho, Galder Gaztelu-Urrutia, Netflix, Victor Hugo
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