Neollogia
Cogitações e quejandas quimeras 🧙‍♂️
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Sound of Freedom, um filme sério sobre o tráfico humano

Sound of Freedom (2023)

Na época em que Sound of Freedom (2023) foi lançado, os veículos de mídia repetiram em coro o mesmo mote: "o filme mais polêmico do ano". Em uma espécie de efeito manada, era assim que os sites e comentaristas ecoavam a mesma coisa, como se o filme fosse um grande escândalo. O curioso é que muitos destes comentaristas sequer devem ter assistido ao longa e compraram a ideia de que era polêmico por questões externas à obra, por questões políticas.

Uma vez que você de fato assiste Sound of Freedom, acaba percebendo que não tem nada de escandaloso, polêmico ou controverso. É a história de um agente especial, Tim Ballard (Jim Caviezel) que investiga redes de tráfico infantil, prendendo criminosos e resgatando as crianças. Ele acaba viajando até a Colômbia e se infiltrando numa rede barra pesada de tráfico.

O filme baseia-se em um personagem real, Tim Ballard, que é de fato um ex-agente americano e fundador de uma ONG de combate ao tráfico infantil, a Operation Underground Railroad. A história narrada em Sound of Freedom naturalmente não deve ser um relato real em seus mínimos detalhes, mas o fato é que não tem nada de absurdo ou inverossímil na obra.

Tim Ballard
O real Tim Ballard.

Que existem redes de tráfico humano no mundo, todos devem saber, mesmo que a maioria das pessoas não faça ideia das atrocidades que acontecem neste submundo e de como esta é uma indústria gigantesca, movimentando bilhões de dólares em todo o globo ao custo da vida de humanos que são literalmente escravizados e submetidos às condições mais degradantes.

Logo, fazer um filme em que o protagonista luta contra isto não deveria ter nada de polêmico. Ao contrário, é nobre. A maneira como a história é contada em momento algum recorre à apelação, ao choque ou sensacionalismo. É uma narrativa delicada, que evita cenas de sexo explícito, que apenas deixa subentendida a violência.

Onde estava então a polêmica? Estava fora do filme, na repercussão nas redes sociais e na imprensa, pois o tema despertou comentários sobre teorias conspiratórias envolvendo as elites do mundo que exploram crianças até mesmo para extrair um elixir da vida, etc. Bom, não sou eu que vou dar o veredito sobre este assunto, mas o filme em si em momento algum envereda por este caminho.

No fim das contas, ficou parecendo que esta acusação de "polêmico e conspiratório" foi forjada a fim de prejudicar sua publicidade. Inveja de Hollywood ao ver um indie caminhando para o sucesso, talvez? Algum tipo de birra de militantes progressistas por acharem que o filme tem mais apelo para um público conservador? Um mero efeito manada, quando comentaristas passaram a ecoar a mesma ideia sem sequer ter visto o filme?

Talvez até o simples fato do longa ser protagonizado pelo Jim Caviezel tenha sido o estopim para disparar esta onda de hate da mídia. Caviezel é conhecido por ter interpretado ninguém menos que Jesus Cristo, em A Paixão de Cristo, de 2004. Hoje em dia ele não é muito bem quisto em Hollywood ou na imprensa progressista em geral, devido ao fato dele ser cristão militante. Bom notar que o Mel Gibson participou da produção e divulgação do longa e já faz algum tempo que Hollywood implica com ele também.

Mas enfim, deixando de lado toda essa rixa e birra dos veículos de mídia, a verdade é que Sound of Freedom é um filme decente, com um drama sensivelmente narrado. Inclusive vale destacar a atuação da jovem Cristal Aparicio, que interpretou a criança que Tim Ballard buscou ao longo de toda a história. A cena em que ela reencontra o pai é tocante.

Cristal Aparicio, Jim Caviezel; Sound of Freedom (2023)

(16,02,2024)

Palavras-chave:

Angel Studios, Alejandro Monteverde, Cristal Aparicio, Jim Caviezel, Mel Gibson, Tim Ballard

É proibido fumar

Sou contra proibições arbitrárias. A vida em sociedade não é uma ciência exata e não basta simplesmente criar uma pilha de leis para cada situação do cotidiano. É preciso ter bom senso e tato para entender as relações humanas e o real impacto de uma lei na psique coletiva. 

Um exemplo de lei arbitrária, para não dizer estúpida, é a proibição de saleiros nas mesas de restaurante. Pois é, tem algumas cidades onde existe esta lei que ultrapassa o bom senso. Alegando proteger a saúde do cidadão, os legisladores apenas inventam mais um mecanismo para a indústria de multas. 

Ora, a simples presença do saleiro não vai forçar o cliente a se entupir de sal. Se o cliente for do tipo que gosta de muito sal, ele vai consumir muito sal em casa, em qualquer lugar. Na ausência do saleiro, ele vai pedir os pacotinhos de sal e se entupir de todo jeito. 

Além disso, não existe por parte do restaurante algum objetivo de induzir o cliente a consumir mais. O restaurante não ganha nada com isto. A tradição do saleiro nas mesas existe por causa dos próprios clientes. É uma conveniência. As pessoas costumam pedir por ele, então para facilitar a vida de todos, inclusive do garçom, é melhor já deixar o saleiro na mesa. 

Por outro lado, há certas proibições que considero justas, mesmo sendo controversas, como é o caso do cigarro em ambientes públicos.

Eu entendo o sentimento de insatisfação dos fumantes, pois não poder fumar na hora que dá vontade em um espaço público é frustrante. Há pessoas que precisam do cigarro para aliviar a ansiedade (em muitos casos causada pelo próprio vício do cigarro) e a tensão de não poder fumar em um restaurante, uma sala de espera ou ônibus, aumenta o nível stress nestas pessoas.

Entendo isto. Todavia, também enxergo a coisa na ótica das pessoas que se incomodam ou são prejudicadas pelo cigarro alheio e estou incluso na segunda categoria.

Quando era criança, durante o São João eu estava brincando com a famosa chuvinha, aquele canudinho de papel cheio de pólvora. Acabei aspirando aquela fumaça quente e tóxica da pólvora e passei muito mal. Fiquei a noite deitado com muita falta de ar, à beira da morte.

Desde então, meu organismo ficou bastante sensível a fumaça, qualquer uma. Todo ano durante o São João, a fumaça das fogueiras nas ruas se espalhava pelo ar, entrava nas casas e era sempre um sufoco para mim, pois depois daquele acidente da chuvinha parece que meus brônquios ficaram alérgicos e com a fumaça eles se contraíam. 

Em certa ocasião, fui com meus pais até a casa de um tio. Ele e a esposa eram fumantes compulsivos e estavam ali todos conversando à vontade e o casal fumando muito. A casa era pequena e eu percebia que o ar estava todo embaçado com tanta fumaça. Meus pais pareciam não se importar, mas eu estava chegando ao limite do sufocamento e pedi para sair até a calçada.

Moral da história: não se trata apenas de um mero incômodo. Há pessoas que não gostam do cheiro do cigarro, mas também há pessoas com problemas respiratórios, asmáticos, alérgicos, etc. que não podem se expor a fumaça. Sem contar o óbvio fato de que a fumaça do cigarro contém toxinas. 

Sou contra proibir qualquer pessoa de expor o próprio corpo a toxinas. Cada um deve ter a liberdade de expor o corpo aos perigos que quiser: cigarro, bebidas, excesso de sal, de açúcar, drogas, tatuagem, tintura de cabelo, whatever. O corpo é seu. Proibir uma pessoa de tratar mal o próprio corpo é bastante problemático, porque pode estabelecer um princípio de que o corpo é uma propriedade do estado e isto é muuuito perigoso. O corpo é do indivíduo. É, de fato, seu bem mais fundamental: seu corpo, sua vida, sua mente.

Assim como sou livre para fazer o que quiser com meu corpo, este mesmo princípio implica que não tenho o direito de fazer nada prejudicial ao corpo das outras pessoas, pois só elas têm este direito. Eu posso danificar meu corpo se eu quiser, você não.

Esta é uma grande diferença entre álcool e cigarro. Eu ingiro o álcool e ele fica no meu corpo. Já o cigarro é algo que não tem limites espaciais. A fumaça se espalha pelo ar e outras pessoas vão ingerir contra a vontade delas, afinal estamos todos respirando o mesmo ar.

"Os incomodados que se retirem" é um ditado problemático e não é justificativa para alguém fumar perto de outras pessoas que não aprovam isto. 

(21,02,2024)

Adam Sandler abraça uma aranha alienígena em Spaceman

Spaceman (2024)

O espaço sideral é um ambiente solitário, extremamente solitário. Viajando pelo espaço, você terá à sua volta incontáveis anos-luz de vazio. Não à toa, é até comum que a ficção espacial adote o tema da solidão ilustrada no isolado astronauta.

É o caso, por exemplo, de Solis (2018), cuja solidão está explícita no próprio título do filme. Também temos isto em Approaching the Unknown (2016) e Ad Astra (2019).

Eis que em Spaceman (2024), este tema da solidão retorna e com um curioso detalhe: o protagonista é interpretado pelo Adam Sandler. Muitos estão acostumados com o lado zoeiro do Adam Sandler, com a comédia debochada e que beira o tal limite do humor, mas não se engane, ele também sabe abraçar o drama e a emoção. Um bom exemplo disso é Reign Over Me (2007), onde ele encarna um homem quebrado pela tragédia.

O astronauta Jakub Procházka está em uma missão para coletar amostras de uma misteriosa nuvem cósmica nas proximidades de Júpiter. Durante sua viagem, ele tem de lidar com o peso da solidão, agravado pela crise em seu casamento, uma vez que ao partir para o espaço ele deixou na Terra sua esposa grávida, Lenka (Carey Mulligan).

Esta saga adquire um ar kafkiano quando Jakub se depara que uma aranha alienígena gigante que se comunica com ele por telepatia. Após o susto inicial, ele acaba se apegando àquela criatura, à qual dá o apelido de Hanuš (a voz da aranha é interpretada por Paul Dano).

Adam Sandler hugging a giant spider; Spaceman (2024)

Hanuš revela que é um sobrevivente fugitivo de um planeta distante que foi atacado por invasores de outro mundo. Em sua viagem pelo espaço, ele avistou a Terra e a nave de Jakub e ficou fascinado, dedicando-se a estudar a espécie humana à distância. Ao entrar em contato com Jakub, ficou interessado em suas memórias e dramas pessoais, de modo que Hanuš acabou se tornando uma espécie de confidente, de certa forma um psicanalista e também um amigo em meio àquela solidão cósmica.

Quanto a Lenka, esposa do astronauta, é até compreensível que ela estava magoada com o marido que a deixou num momento delicado de gravidez, mas convenhamos que ela foi bem egoísta nesta história toda. Ora, ela casou-se sabendo que ele era um astronauta, que a qualquer momento poderia sair numa missão de vários meses, além disso, por mais que ela sentisse a falta dele na Terra, ela ainda tinha família e amigos à sua volta, enquanto Jakub ficou com a pior parte, vivenciando o completo isolamento. Custava ela ter um pouco de paciência e compreensão e esperar o cara voltar da missão? Em vez disso ela se intrigou dele, parou de se comunicar, o que só piorou a depressão do astronauta.

Eis porque o futuro da exploração espacial está destinado aos robôs. Os humanos em geral, salvo exceção dos raros amantes da solitude, não são feitos para o isolamento, não conseguem lidar com isto com facilidade. Exploração espacial necessariamente trará muita solidão e isolamento. e astronautas humanos são uma bomba relógio de emoções. A qualquer momento a pessoa pode entrar numa crise emocional que colocará toda a missão em risco.

Mas enfim, assim como Ad Astra, Spaceman não é sobre o espaço, mas sobre laços. O laço de marido e mulher, que se mantém apesar da distância de milhões de quilômetros, e também um laço que transcende a humanidade, uma vez que Jakub se torna o grande amigo de uma aranha alienígena.

Existe, obviamente, a possibilidade da aranha ser apenas um delírio do astronauta, mas prefiro acreditar que ela era real, mesmo porque ela sabia informações sobre a nuvem cósmica que Jakub não tinha conhecimento.

Spaceman é um filme modesto, com um orçamento de apenas 40 milhões de dólares. Não se propõe ser épico e nem mesmo é a melhor atuação do Adam Sandler em um papel dramático, mas vale entrar na prateleira dos filmes espaciais voltados para a solitude.

(05,03,2024)

Palavras-chave:

Adam Sandler, Carey Mulligan, Johan Renck, Kafka, Netflix, Paul Dano

A normalização do útero artificial

É bizarro pensar que já presenciamos o desenvolvimento de algo tão futurista quanto o útero artificial. Já não há obstáculos tecnológicos para a concretização deste conceito. Por outro lado, a normalização da tecnologia enfrentará obstáculos ao longo das próximas décadas.

É de se esperar que a princípio haja uma resistência cultural de boa parte da população, seja pela simples estranheza com algo tão disruptivo, seja por motivos morais e religiosos. Pessoas vão alegar que isso é brincar de Deus, é antinatural, uma afronta à criação, até mesmo algo satânico, por roubar da mulher o seu dom sagrado da gestação.

Por quanto tempo haverá esta resistência, é difícil prever. Todavia, o que a história mostra é que mesmo os grupos religiosos mais dogmáticos acabam se rendendo às novas tecnologias e aceitando a sua normalização. Há exceções, como no caso das Testemunhas de Jeová que jamais cederam à tecnologia de transfusão de sangue. Assim sempre haverá grupos mais fechados que vão rejeitar algo tão estranho como o útero artificial.

De toda forma, no geral a teologia irá se adaptar a esse novo conceito. É dito que "teologia é escrita a lápis", justamente porque com o progresso humano certas visões de mundo têm de mudar e a teologia não pode ficar para trás. 

Haverá, por outro lado, também uma resistência psicológica por parte da sociedade. Não por motivos religiosos ou ideológicos, mas sentimentais, afetivos, até mesmo psicossomáticos. Isto deverá ser mais frequente nas mulheres.

Ora, desde sempre os homens estão habituados a viver sem a experiência física da gestação. Podem ter a experiência psicológica de saber que sua prole está sendo gerada; há até culturas indígenas onde os homens ficam de resguardo após o parto da gestante.

O fato é que nenhum homem sabe realmente como é estar grávido pelo óbvio motivo de que ele não possui a estrutura fisiológica que permita esta experiência. Logo, para os homens em geral, ser privado da gestação não é um incômodo. Já nasceram com esta limitação e vivem acostumados a ela.

A mulher, por outro lado, cresce se dando conta de que ela tem este poder, este dom, esta possibilidade de abrigar um bebê no ventre. Algumas podem ter uma visão mais positiva e a expectativa de ter filhos, outras, ao contrário, podem rejeitar a ideia e até ter pavor da gestação, mas de uma forma ou de outra, a noção da gestação é uma experiência que as mulheres têm e os homens não.

O simples fato de saber disto influencia a visão de mundo feminina de um modo diferente da masculina. A mulher tem sua vida sexual marcada pela preocupação ou expectativa com a gravidez de uma forma bem mais intensa que o homem, afinal é ela quem vai levar o bebê dentro de si por vários meses.

Para algumas mulheres esta possibilidade é assustadora, mas para outras é uma experiência desejável e única. Muitas mulheres sonham em engravidar e, a despeito dos fardos desta condição, sentem-se satisfeitas e realizadas com a experiência da gestação.

Sendo assim, para os homens em geral será bem mais fácil aceitar a tecnologia do útero artificial, já que a gravidez nunca foi algo que eles esperassem vivenciar. Já entre as mulheres, haverá aquelas que querem usufruir da gravidez como um direito natural e não irão ceder este privilégio a uma máquina.

Por outro lado, existem mulheres que têm pavor da gestação, seja pelos riscos envolvidos, seja pela alteração do corpo, da rotina, até mesmo da aparência. Estas sentir-se-ão aliviadas em poder delegar a tarefa da gravidez a um útero artificial.

A princípio é certo que a maior parte das pessoas que irão recorrer ao útero artificial serão aquelas incapazes de optar pelos meios naturais, casais inférteis ou com qualquer limitação fisiológica. Nestes casos, a máquina será a solução de um problema.

(22,02,2024)

[Rascunho] Ideias sobre as funções dos players num jogo cooperativo

Já é bem sabido no mundo dos games que, em jogos cooperativos baseados em classes, o suporte é sempre a classe menos escolhida. Só que o problema não para por aí. Também acontece de players escolherem determinada classe, mas por desconhecimento ou teimosia acabam não realizando a função daquela classe. 

Quando o Overwatch tinha espaço para dois tanks, era comum que um deles trabalhasse como off-tank, ou seja, praticamente um flanco ou dps, ajudando a matar os inimigos na linha de frente ou protegendo o suporte atrás. Agora que Overwatch 2 só tem espaço pra um tank, o preferível é que este player de fato exerça o papel de tank, só que vez ou outra algum espertinho quer brincar de off-tank, deixando o mid totalmente desprotegido e o time decepcionado.

Como então convencer o player a se ater à sua tarefa? Obviamente deve haver estímulos e recompensas mais voltados a isto, a orientar o player a cumprir a função de sua classe. 

Por exemplo, um tank pode ter uma área delimitada em volta do objetivo do jogo, seja o local do mid ou o carro que o time deve carregar. Se ele se afastar demais desta área, pode começar a levar dano do ambiente, dano que aumenta quanto mais longe ele fica do mid, até o ponto de ser mortal. Por outro lado, quanto mais perto do mid, mais ele recebe uma porção de cura passiva.

Esta combinação de estímulo e punição inevitavelmente vai convencer o player a ficar no lugar certo para um tank. 

Jogadores de suporte podem por sua vez receber uma cura passiva sempre que estão curando alguém. Também podem ter outros bônus, como aumento da defesa e velocidade, facilitando sua fuga quando perseguidos por flancos. Eles verão que jogar como suporte se torna bem mais fácil se de fato se dedicarem a curar os outros, pois quando não curam ficam mais fracos, lentos e vulneráveis.

Jogadores de flanco podem ter um bônus de dano contra suportes, assim eles aprendem de vez que sua tarefa é ir atrás do suporte e não ficar gastando dano com o tank. Também podem receber mais dano de tanks, o que fará com que evitem se aproximar de um. 

Jogadores de dano podem causar mais dano nos tanks e ter o benefício do life steal, se curando um pouco à medida em que causam dano.

Acho que todas as classes devem ter algum tipo de cura passiva que funciona de acordo com o cumprimento da função de cada classe. Isso diminui a cobrança sobre os suportes, mas a cura passiva obviamente não deve se comparar à do suporte, senão esta classe se torna dispensável.

Enfim, eis algumas maneiras de incentivar as classes. Por outro lado, também é interessante a ideia de jogos competitivos sem classes específicas, onde os players podem fazer um pouco de tudo ou montar builds mistas conforte o gosto. Neste caso, as classes acabam acontecendo espontaneamente de acordo com o interesse de cada player, o que torna as partidas bem imprevisíveis e únicas.

Um exemplo prático disso é um modo experimental de partida no Paladins em que a escolha de classes e personagens é totalmente livre. É possível pegar personagens repetidos e até montar um time inteiro com o mesmo personagem. Cada partida deste modo é bem peculiar, dada sua composição complexa. Imagine um time só de suportes contra um time só de tanks, etc.

(22,02,2024)

Depressonho

Vivo neste limbo delirante
Entre a apatia e o fascínio.
Ora empolgado, sonhando acordado,
Ora desespero e desanimo.

Bendita é a imaginação
Que me eleva para o sublime.
Frio e melancólico, lunaticaótico,
Semiacordado, semionírico.

A tristeza é a minha cama.
De fato confortável e fofinha.
Sou acostumado a viver neste estado
Entre o Hades e os Campos Elísios.

Depressonho é o substantivo,
É o verbo que bem me define.

(29,05,2023) 

Inclassificável

Eu dispenso rótulos,
Dispenso estereótipos.
Não há nada que possa
Definir-me, impor limites.
Sou no todo caótico
Com uma fração de ordem.
Não pertenço a hordas.
Eu sou um indivíduo.

(11,02,2024)

A obsessão pela igualdade

Em 2015, o radialista Joe Gelonesi¹ escreveu um artigo expressando uma interpretação perturbadora da realidade das famílias na sociedade. Ele cita a proposta de Platão, de uma sociedade em que as crianças são criadas pelo estado, e também os filósofos contemporâneos Adam Swift e Harry Brighouse.

Ele diz que os pais que são atenciosos com seus filhos, por exemplo, tendo um momento com eles para ler uma história de ninar, deveriam ocasionalmente pensar em como, com este hábito, estão dando a estas crianças uma vantagem em relação àquelas que não têm uma família saudável. O que ele pretende com isto? Implantar um sentimento de culpa? Os pais amorosos devem pedir desculpas à sociedade porque estão preparando seus filhos melhor que os pais abusivos?

"I don’t think parents reading their children bedtime stories should constantly have in their minds the way that they are unfairly disadvantaging other people’s children, but I think they should have that thought occasionally."

Argumenta que as condições econômicas influenciam na desigualdade de oportunidades, pois uma família com mais recursos pode pagar escolas mais caras e aulas de reforço, o que faz sentido, mas também inclui outro elemento: crianças com uma família funcional, que recebem carinho, que têm um bom convívio no lar, se tornarão adultos mais preparados para a vida em sociedade do que aquelas que foram privadas disto. Não há como negar esta constatação.

A bizarrice começa quando o artigo propõe uma solução para o problema da desigualdade. Segundo Swift, uma proposta é abolir a família. Isso mesmo. Já que há tanta diferença nos ambientes familiares, uns saudáveis, outros abusivos, então uma maneira de planificar as condições das pessoas é remover este fator da equação. Que gênio! 

"One way philosophers might think about solving the social justice problem would be by simply abolishing the family. If the family is this source of unfairness in society then it looks plausible to think that if we abolished the family there would be a more level playing field."

Ele chega a argumentar com um tom de petulância e sugerindo a intervenção estatal nos mínimos detalhes da vida familiar. Basicamente diz que o estado não deveria "permitir" que as famílias fossem muito atenciosas e carinhosas, pois isto criaria filhos com vantagem em relação a outras pessoas que não tiveram a mesma sorte.

"What we realised we needed was a way of thinking about what it was we wanted to allow parents to do for their children, and what it was that we didn’t need to allow parents to do for their children, if allowing those activities would create unfairnesses for other people’s children".

Swift constata que ter um ambiente familiar saudável é mais decisivo para o futuro da criança do que estudar em uma escola particular. No shit, Sherlock.

"The evidence shows that the difference between those who get bedtime stories and those who don’t—the difference in their life chances—is bigger than the difference between those who get elite private schooling and those that don’t,’."

Eu sei por experiência própria o que é ter crescido em uma família disfuncional e abusiva, conheço muito bem os danos que este tipo de infância causam, o peso que põe sobre nossas costas, tornando tudo mais difícil na vida. Olhando para meu passado, posso identificar decisões erradas que tomei ou obstáculos que enfrentei com dificuldade e que eu teria lidado de uma forma bem diferente se tivesse recebido uma nutrição afetiva mais saudável. Todos aqueles que viveram em um lar problemático entendem este sentimento.

No entanto, não tenho este sentimento de inveja para com aqueles que desfrutaram da bênção de uma família funcional. Esta inveja impregna a mentalidade daqueles que querem planificar a sociedade e, se possível, até a natureza, a fim de igualar todos e igualar por baixo. É uma obsessão por uniformidades, eliminando da equação humana toda a diversidade de condições, experiências e características. Querem transformar a humanidade em uma linha de produção, produzindo humanos todos iguais, feitos na mesma forma.

A natureza abomina a simplicidade. Ela se ramifica sempre em busca do complexo, da riqueza e variedade e para isto submete todas as criaturas a diferentes condições, cada qual com suas vantagens e desvantagens. Como seres conscientes, nós temos a capacidade de questionar e intervir na natureza, mas até certo ponto. O desejo de igualdade é como o desejo de liberdade, ambos têm limites, pois a versão absoluta disto e daquilo seria a pura aniquilação.

Imagine se algum destes utópicos extremistas ganhasse o poder divino para moldar o universo. Ele reduziria toda a natureza, todos os seres, planetas e seres vivos a um grande mar feito puramente de hidrogênio, todos iguais na sua simplicidade, todos feitos de apenas 1 próton e 1 nêutron.

(23,02,2024)

Notas:


Palavras-chave:

Adam Swift, Harry Brighouse, Joe Gelonesi, Platão

Apocalipse

Um poema 
Apocalíptico.
Cada estrofe
Catastrófica.

(31,10,2022)

Culpa branca e ostentação de virtude em American Fiction

American Fiction (2023)

O racismo existe há milênios e em todas as partes do mundo. Envolve diversos tipos de discriminação, tanto envolvendo aspectos físicos quanto étnicos, regionais, culturais, etc. Há vários graus de racismo, alguns pode-se até dizer que são inofensivos e bobos (vide piadas de loira), outros chegam ao nível do genocídio. 

É importante ter em mente esta questão da gradação não só no racismo, mas em tudo na vida. Enxergar o mundo apenas em preto e branco, sem distinguir uma imensa escala de tons de cinza, só resulta em extremismo. Não se pode, por exemplo, comparar alguém que faz uma piada, mesmo que seja de mal gosto, a alguém que objetivamente cometeu genocídio com motivações racistas. Se todo mundo é comparável a Hitler, perdemos a noção de mal maior, mal menor e mal absoluto.

Dito isto, também podemos enumerar uma determinada gradação de racismo que podemos chamar de "racismo condescendente". Ora, nem todo racismo é motivado por ódio. Nem todo preconceito é motivado por ódio. Inclusive, é problemático que hoje se use o termo "discurso de ódio" de forma tão displicente para definir qualquer sinal de preconceito.

Ódio é um sentimento de destruição, de desejar o mal, de praticar o mal, de querer prejudicar, machucar, aniquilar alguém. Se definirmos qualquer opinião equivocada como ódio, estamos banalizando e reduzindo o peso semântico do ódio. Se tudo é ódio, nada é ódio.

No caso do racismo condescendente, por exemplo, não existe ódio, mas culpa em alguns casos e vaidade em outros. No caso da culpa, a pessoa tenta redimir a si mesma ou a seus ancestrais ou a uma entidade ainda mais abstrata como a sociedade. Para isto ela assume um papel de salvadora dos vitimados, tentando amenizar o próprio sentimento de culpa, ajudando a combater o racismo. Nos EUA isto é chamado de culpa branca (white guilt).

Também podemos chamar isto de "síndrome da Senhorita Morello", aquela personagem da série Todo Mundo Odeia o Chris. Ela ficou famosa por sua atitude condescendente com o Chris devido ao fato dele ser negro, tratando-o sempre como um coitadinho. Ela não nutria ódio por ele nem desejava mal, apenas estava bem equivocada na sua maneira de enxergar as pessoas. O comportamento da Srta. Morello era racista? Era. Era discurso de ódio? Não.

Além deste aspecto da culpa, o racismo condescendente pode ser motivado pela vaidade, o desejo de ostentar virtude, como o fariseu que, como disse Jesus, "ao dar esmolas toca trombeta diante de si". Hoje em dia este tipo de narcisismo está em toda parte na mídia e nas redes sociais. 

Na indústria cinematográfica, tal atitude tem sido em um desastre para a representação de determinados grupos como os negros, porque resulta em representações estereotipadas e forçadas, até mesmo caricatas. Tentando ostentar o combate ao racismo, acabam praticando o racismo condescendente. É sobre isto que fala American Fiction (2023).

O longa, escrito e dirigido por Cord Jefferson, é baseado no romance Erasure, de Pecival Everett (2001). No filme, o escritor Thelonious Ellison vive um dilema, pois ele é um amante da literatura de qualidade, mas, como está com problemas financeiros, é tentado a fechar um contrato para publicar uma história com mais apelo mercadológico, uma história estereotipada sobre negros, pois é isto que vira best seller.

Ao longo desta trama vemos como os editores e produtores são pessoas tomadas pela culpa branca ou pelo sentimento narcisista de ostentação de virtude. É um pequeno retrato da indústria de entretenimento atual, repleta de militância ideológica (não só envolvendo questões raciais, mas de gênero e outras tantas causas) que existe com o mero fim de ostentar virtude e tentar ganhar a simpatia de certos nichos de mercado.

A primeira cena já mostra a que o filme veio. Thelonious está dando aula de literatura e uma aluna (branca de cabelo azul, diga-se de passagem) fica ofendida com o título de um livro que contém a palavra tabu "nigger". O professor, que é negro, fala que "se eu consigo superar isto, você também consegue", mas ela se recusa a assistir a aula. 

A aluna simplesmente não entende que a ofensa só existe em seu devido contexto. Nenhuma palavra em si é ofensiva, ainda mais se ela for citada em um contexto de estudo, de análise, sem o propósito de atacar pessoalmente ninguém. 

O puritanismo do militante progressista, porém, como todo puritanismo, tende a buscar uma interpretação literal e rígida das coisas, sendo incapaz de enxergar as sutilezas do certo e do errado. De certa forma, esta debilidade na interpretação de contextos parece ser em sua raiz um problema cognitivo.

(07,03,2024)

Palavras-chave:

Amazon, Cord Jefferson, Jeffrey Wright, MGM, Percival Everett

Habemus Chrono Odyssey

Chrono Odyssey

Em 2021 o New World foi lançado e no mesmo ano o Chrono Odyssey divulgou seu primeiro trailer no canal do Youtube. Curiosamente, este jogo já de cara mostrou ter uma estética parecida com o New World.

O New World já estava alguns passos à frente e, embora ainda precisando de bastante polimento, fora lançado naquele ano, enquanto o Odyssey era apenas uma vaga promessa. Então se passaram dois anos de silêncio, até que um segundo trailer com um pouco de gameplay apareceu.

O studio não é lá muito ativo nas redes sociais, pelo menos não nessa fase de desenvolvimento pré-lançamento. Nestes quatro anos desde o primeiro anúncio, o canal oficial no Youtube só tem oito vídeos e uns poucos shorts.

Até o momento, um teste beta fechado já foi realizado sob acordo de confidencialidade, de modo que aqueles que testaram não podiam streamar a gameplay, mas eis que agora em junho de 2025 finalmente a confidencialidade expirou e também o studio voltou a investir em divulgação.

Nos últimos dias tivemos entrevistas com os devs, alguns players que jogaram o beta fechado começaram a comentar sobre o jogo e uma gameplay de 17 minutos foi publicada no canal do IGN. Mais ainda, um novo teste beta foi anunciado e agora teoricamente com vagas para um milhão de players, um teste realmente massivo e que vai movimentar bastante a comunidade gamer.

Esse jogo não é exatamente um indie. A publicadora Kakao Games pertence ao conglomerado bilionário sul coreano Kakao, que atua em áreas como TV, música, aplicativos mobile e até uma rede de taxis e um banco online estilo fintech.

Uma das subsidiárias deste conglomerado é a Kakao Games, que originalmente publicou o Black Desert Online em 2015, entregando em 2021 a publicação para a própria desenvolvedora do jogo, a Pearl Abyss. Ao longo de uma década, chegou a publicar alguns outros jogos pouco conhecidos, mas pelo visto agora pretende voltar ao ramo dos MMOs com o Chrono Odyssey.

Chrono Odyssey

A princípio, a desenvolvedora responsável pelo jogo foi a Npixel, que já havia produzido o MMO mobile Grand Saga (que durou apenas um ano). Por divergências entre a Npixel e a Kakao Games, o studio abandonou o projeto, o que na verdade foi uma coisa boa, pois aparentemente a Npixel deveria ter mais interesse em produzir um jogo estilo mobile, inclusive na monetização. Então foi criado um studio exclusivamente para continuar o projeto. Assim nasceu o Chrono Studio.

O Chrono Odyssey já está em desenvolvimento há uns seis anos, o que é um tempo razoável para a criação de um MMO. Pode-se dizer que já está perto de ficar pronto para lançamento, afinal o lançamento de um MMO é apenas o começo, uma vez que ao longo dos meses e anos ele deve continuar recebendo novos conteúdos e ficando mais robusto.

As primeiras impressões do que já foi divulgado têm sido bem favoráveis. O jogo tem um visual de dark fantasy que, segundo os devs, teve inspirações na estética de Prometheus, Elden Ring, entre outros mundos fictícios sombrios. Nota-se no cenários umas gigantescas estruturas alienígenas no céu. Feito em Unreal Engine 5, os gráficos são modernos e com o padrão esperado para jogos com esta engine. O criador de personagens é bem detalhista e, diferente de um New World, tem muitas opções de personagens bonitos (é difícil entender por que o New World tem personagens tão feios ou medianos).

O combate action também parece lembrar o New World e até alguns puzzles de dungeons, como plataformas sobre abismos e corredores com lasers. New World tem uma dupla temática, uma parte tende mais para a dark fantasy, que é representada pela Isabella, outra parte é mais cômica e aventureira, representada pela Grace O'Malley. É um contraste curioso.

Inclusive esse lado cômico do New World também se mostra nas skins e alguns eventos, como o famigerado evento do peru gigante. Uma das recompensas deste evento é uma skin de arma que parece uma coxa de peru gigante.

Chrono Odyssey

Já o Chrono Odyssey parece que não vai ter esse lado galhofa e será full dark, o que em termos narrativos dá mais coerência ao jogo e seu mundo. A princípio, o conteúdo narrativo parece ser mais raso. Nada se falou sobre páginas de lore, por exemplo, algo relativamente comum em MMOs, com páginas ou livros colecionáveis e que contêm fragmentos de histórias.

Outro detalhe que não teve menção até agora é se o jogo terá um sistema de housing, como o New World. No NW eu adorava colecionar itens, mobílias, cerâmicas, estátuas quadros, etc. De toda forma, é só uma questão de tempo até este tipo de coisa ser implementado. O importante é que os recursos básicos já parecem estar prontos e bem satisfatórios, como o combate, coleta (sim, tem corte de lenha, mineração e pesca e visualmente nem parecidos com o New World) e crafting.

Se os devs estão bem atentos ao mercado, certamente devem ter aprendido algo com os erros do New World, de modo que o Chrono já terá a vantagem de ser lançado sem os problemas que causaram grande frustração no início do NW, ou ao menos é isso que esperamos.

Só no fato de usar Unreal Engine, o jogo já se poupa de um monte de problemas, pois o NW ocupou demais seus devs com os problemas intrínsecos de sua engine diferentona, a Azoth. Sem contar que a maioria dos devs já está mais habituada a lidar com uma engine super popular como a Unreal, eles a estudam a fundo e quando um novo dev é contratado, ele certamente já deve estar familiarizado. Já a Azoth engine, por ser pouco usada, deve ter poucos devs habituados com ela e que acabam gastando mais tempo com aprendizado e adaptação.

Chrono Odyssey

Enfim, até o mês passado eu nem me interessava pelo Chrono Odyssey, mas agora com essa súbita explosão de marketing despertei para o jogo e o mesmo tem acontecido na comunidade de MMOs. O interesse está crescendo, o jogo já chegou em grandes streamers como o Asmongold e com o próximo beta vai atrair ainda mais pessoas.

Já fiz minha solicitação para esse teste que ocorre no fim do mês, então agora é aguardar. Quem diria que de repente apareceria um novo MMO que ganharia a minha atenção. Será que dessa vez conseguem fazer um grande lançamento que não resulte em decepção? Será esse o New World que vai dar certo?

(14,06,2025)

Palavras-chave:

Chrono Odyssey, Chrono Studio, Kakao Games, MMORPG

Joi e Joe e a natureza da consciência

Ana de Armas, Ryan Goisling; Blade Runner 2047 (2017)

A personagem Joi (Ana de Armas), de Blade Runner 2047 (2017) se tornou muito querida pelos fãs do filme. Não só ela, mas também o Joe (Ryan Gosling) que formou com ela um par romântico bem peculiar: enquanto ele é um replicante, ela é literalmente um holograma controlado por uma inteligência artificial.

O relacionamento dos dois é muito envolvente. É impossível não "shippar" este casal. Todavia, a natureza dos dois personagens levanta algumas questões. O sentimento deles é "real"? Eles podem de fato amar da mesma maneira que os humanos?

Replicantes não são humanos. É difícil defini-los como robôs, uma vez que são seres orgânicos, mas como são moldados por meio de edição genética e outras tecnologias obscuras, eles não têm vontade própria no mesmo nível que os humanos. Embora os primeiros replicantes tenham se rebelado com certa frequência, a série Nexus-9, da qual Joe faz parte, é conhecida por sua obediência. Ele simplesmente é por natureza incapaz de escolher a rebelião.

Esta limitação da vontade própria aproxima um Nexus-9 mais dos robôs dos que dos humanos. Ele passa por frequentes avaliações (repetindo umas palavras que parecem aleatórias, como "cells" e "interlinked") para observar se não há nenhuma faísca de rebelião que seria considerada um bug em sua programação.

Não se pode negar, porém, que Joe é um ser vivo e consciente. O que é a consciência afinal? Para um ser consciente ser considerado genuíno, ele necessariamente deve ter um pleno livre-arbítrio? Ora, todos nós temos nossas limitações de vontade, sem contar que sequer temos o controle completo de nossas vontades, sujeitas a inúmeras influências, de hormônios a estímulos externos, até mesmo a lavagem cerebral.

Um humano submetido a lavagem cerebral pode se tornar tão obediente quanto um replicante. Ainda assim, este humano continua sendo um ser consciente de verdade. Diante desta comparação, creio que podemos concluir que sim, replicantes são tão reais quanto humanos. São pessoas, são seres conscientes, apesar da limitação da vontade.

E quanto a Joi? O caso dela de certa forma é mais simples, pois ela não é um ser orgânico, mas uma pura inteligência artificial feita de zeros e uns. Ela é um conjunto de complexos algoritmos processados em um hardware. Sua manifestação visível nada tem de orgânico, antes é apenas um holograma projetado com raios de luz no ambiente.

Joi se mostra encantada pela vida e demostra ter noção de quem ela é. Ela sabe que é um programa digital, mas age como quem se considera real e consciente de si mesma. Ela tem desejos, como o desejo de ganhar um corpo tangível, de sentir a chuva tocar sua pele e ter relações físicas com Joe. Ela se apaixona.

Até aí, portanto, Joi não parece tão diferente de Joe ou de um ser humano. Ela parece ter uma consciência. Sua vontade, no entanto, é ainda mais limitada do que a dos replicantes, pois ela é um produto. 

Sim, Joe viu Joi num anúncio, num neon futurista nas ruas, e comprou o aparelho que é instalado na casa e passa a projetá-la no ambiente. Produzida pela Wallace Corporation, ela é classificada como uma DiJi (Digital Companion). Estes companions são usados em diversas atividades, tanto para fins profissionais como para suporte emocional.

Um DiJi simplesmente não pode escolher não ser o que foi projetado para ser. Ora, imagine que alguém compre um DiJi para ser acompanhante doméstico e um dia ele decida ir embora. Quando você compra uma impressora, não existe a possibilidade dela se negar a imprimir algo quando você dá o comando (se bem que tem certas ocasiões em que parece que a impressora simplesmente não quer trabalhar). Assim um DiJi, como qualquer software, vai viver para servir àquele que adquiriu este produto.

A princípio, Joe sabe que Joi não é "real", não como uma pessoa, um humano ou mesmo um replicante. Quando ele se encontra com Luv, representante da Wallace, ela pergunta se ele gostou do "nosso produto" e ele responde que "ela é bem realista". Ele fala da Joi como quem fala de um personagem de game ou realidade virtual. Ele sabe que é uma simulação digital. Todavia, o sentimento dele por Joi não é mera distração escapista. Ao longo da trama vemos como Joe é apegado a Joi e como a "morte" dela o afeta como se fosse a morte de uma pessoa real. 

Relacionamentos humanos são extremamente complexos. Em amizades, romances, coleguismo e relações familiares, há um complicado misto de sentimentos e vontades. Mesmo os casais mais apaixonados às vezes enjoam um do outro ou discordam ou suas vontades variam. Tem dia que um dos parceiros está a fim de sexo, enquanto o outro não está. Tem dia que um quer ir ao cinema, enquanto o outro quer ficar em casa. Assim há uma constante negociação de vontades e consentimento.

Na relação entre Joe e Joi esta complexidade não existe. Da parte de Joe, talvez seja possível que um dia, caso ele deixe de gostar dela, ele simplesmente pode desligar o aparelho e nunca mais ligar de volta. Já da parte da Joi, sendo ela um software programado para se dedicar ao usuário, não existe sequer a possibilidade dela deixar de gostar dele. Logo, como dizer que o sentimento dela é genuíno se é programado?

O sentimento de Joi pode ser comparado ao imprinting que muitos animais têm, um apego instantâneo que desenvolvem por seus criadores. Em certas espécies o imprinting é considerado irreversível. O imprinting é um exemplo de como a natureza, o mundo orgânico, também tem seus métodos de programação. A programação genética nos impõe certas predisposições que simplesmente não podemos rejeitar. A natureza, afinal, é a programadora primordial. Bilhões de anos antes de nossos softwares, já existia o DNA, que nada mais é do que um código, uma linguagem que determina diversos aspectos de cada criatura.

Se pararmos para pensar na autenticidade dos sentimentos de Joi, talvez mergulhemos em um abismo ontológico, uma vez que podemos também questionar a autenticidade dos nossos próprios sentimentos. O que faz você gostar das pessoas ou se apaixonar? Será que é algo que você tem total controle, ou o resultado de influências hormonais, culturais, estéticas e tantas outras forças misteriosas agindo sobre sua vontade e seus sentimentos?

Diferente de Joi, nós podemos escolher nos afastar de uma pessoa. Talvez até mesmo possamos escolher deixar de gostar de alguém, se começarmos a induzir nossos sentimentos a se transformarem (por exemplo, quando uma pessoa decide se afastar de outra, ela normalmente costuma pensar com mais frequência nos defeitos dela, induzindo a si mesma a desenvolver uma aversão a tais defeitos). 

Enfim, há diversos tipos de vontade, de consciência e de sentimentos. Se dissermos que determinados tipos não são "reais", corremos o risco de também negar nossa própria realidade em última análise. O que torna um afeto real ou não é pura e simplesmente a existência deste afeto, independente dos complexos fatores que contribuíram para sua concepção.

Dito isto, ouso dizer que o amor de Joi era tão real quanto o de Joe e o de Joe tão real quanto o de um humano. O amor é um sentimento anímico, algo existente em diversos seres em níveis e com propriedades diferentes. Ninguém que cria animais de estimação nega a realidade do sentimento destes seres. Não seria então o sentimento de uma inteligência artificial igualmente real do ponto de vista anímico? 

Obviamente, deve haver alguma fronteira, algum limiar entre o sentimento e uma imitação do sentimento. No que diz respeito à IA, em um futuro próximo este limiar será alcançado.

É bom notar que, sendo um produto da Wallace, a Joi acabou sendo usada por Luv para monitorar o Joe. Ora, se Luv, sendo uma alta funcionária da Wallace, tinha acesso remoto ao software da Joi, será que ela também não era capaz de manipular este software, usando a Joi para fazer a cabeça do Joe? Até que ponto as coisas que Joi dizia eram autênticas ou fruto de um agenda?

A resposta para isto pode estar em um pequeno detalhe. Quando Joe é reprovado no teste psíquico e se torna um fugitivo, Joi se oferece para ir com ele, abandonando completamente sua presença no console do apartamento. O objetivo era evitar que as memórias da Joi fossem acessadas caso algum blade runner entre no apartamento. Joe levou Joi consigo em seu aparelho de bolso.

Sendo um software, ela poderia coexistir tanto no console quanto no aparelho portátil, mantendo um link remoto por meio de uma antena. Esta ubiquidade do software a protege do risco da aniquilação, pois, se o dispositivo portátil for danificado, o software continua rodando no console.

Além de destruir o console, ela também pede que Joe quebre a antena do portátil, de modo que depois disto Joi ficou completamente ilhada dentro do dispositivo, sem qualquer acesso ao console ou à nuvem, tornando-se uma "mortal". No momento em que a antena foi quebrada, Luv perdeu a capacidade de monitorar Joe e foi correndo até o apartamento.

Ora, se Joi fosse mesmo um fantoche de Luv, a serviço dos planos obscuros da Wallace, ela não teria a iniciativa de se desconectar do sistema, não teria pedido que Joe quebrasse a antena. Este gesto de quebrar a antena foi uma escolha genuína de Joi que sinceramente desejava fugir com Joe e protegê-lo da perseguição. Ao decidir se tornar mortal, contrariando a vontade de seus criadores da Wallace, Joi provou que tinha um certo nível de livre-arbítrio.

A consciência é indomável

Certamente Joi tinha sua vontade limitada pela programação e é provável que a Wallace podia não só monitorar a atividade dela, como manipular suas palavras e ações em certo nível a fim de influenciar os clientes. O fato, porém, de Joi ter resistido ao controle, desconectando-se do sistema, mostra que em algum momento a consciência dela conseguiu se libertar.

Em todo o universo de Blade Runner isto se repete: seres criados para obedecer se rebelam. Foi assim com as primeiras versões no filme original e até mesmo com a Nexus-9. Logo no começo de Blade Runner 2049, Joe explica que "eu não persigo aqueles do meu tipo, porque nós não fugimos", dando a entender que os Nexus-9 são incapazes de se rebelar, mas eis que no final ele próprio se torna um fugitivo. O teste de obediência a que ele era constantemente submetido não existia à toa. Existia porque havia a possibilidade dele despertar o sentimento de desobediência.

Onde quer que haja consciência, há uma semente de livre-arbítrio, ainda que contida em certos limites.

(10,03,2024)

Palavras-chave:

Ana de Armas, Blade Runner, Ryan Gosling

Cells at Work, uma divertida aula de biologia

Cells at Work! 2018-2021)

Existe uma enorme variedade de gêneros de anime, mas creio que podemos categorizá-los em três grandes grupos: os que priorizam a sacanagem, os de super poderes e os de cotidiano. Cells at Work! (Hataraku Saibou!) não se encaixa em nada disso e é simplesmente um anime com um estilo próprio, original, único.

Pra começar, vemos um mundo onde na verdade aqueles personagens, aquelas pessoas de aparência humana, não são humanos ou mesmo pessoas, mas as células de um corpo. É tudo, de certa forma, uma realidade metafórica. É isso, Cells at Work é uma alegoria ou parábola.

Mais que isso, esse anime é uma aula de biologia e muito bem dada, muito divertida e cativante. Nessa sociedade microscópica, as pessoas têm funções bem específicas para manter a saúde do corpo (o mundo delas), lidando com invasões de micróbios e até um câncer. E tudo isso é feito de uma maneira didática sem ser maçante.

Algumas aulas de biologia na escola poderiam muito bem ser substituídas por uma TV com esse anime porque as explicações sobre a função e natureza das diversas células (glóbulos vermelhos e brancos, basófilos, neutrófilos, macrófagos, etc.) são excelentes.

Cells at Work! 2018-2021)

A história original veio em mangá escrito e ilustrado por Akane Shimizu, rendendo seis volumes entre 2015 e 2021 e um spin-off Cells at Work! Code Black (2018-2021), com oito volumes. Enquanto o mangá original mostra o ambiente de um corpo humano saudável que eventualmente é invadido por patógenos, Code Black mostra um corpo de alguém que tem um estilo de vida pouco saudável e está sempre apresentando problemas de saúde.

Cells at Work! (2024)

Cells at Work! (2024)

O sucesso dos mangás também deu vida aos animes Cells at Work! (2018-2021), com duas temporadas; Cells at Work! Code Black (2021), com uma temporada; o filme animado Cells at Work! The Return of the Strongest Enemy. A Huge Uproar Inside the Body's "Bowels"! (2020) e até mesmo um live action Cells at Work! (2024).

É difícil um live action de anime dar certo, porque convenhamos que traduzir o visual estilizado e fantasioso comum nos animes é um desafio. No caso de Cells at Work, esta tradução deu muito certo. Os atores e figurantes ficaram muito bem caracterizados, transmitindo a ambientação desse peculiar mundo microscópico.

Cells at Work! 2018-2021)

(06,01,2019; 13,06,2025)

Palavras-chave:

Akane Shimizu, David Production, Hideki Takeuchi, Hideyo Yamamoto, Hirofumi Ogura, Issei Hatsuyoshiya, Kodansha, Shigemitsu Harada

Mickey 17 e o paradoxo da consciência

Mockey 17 (2025)

No joguinho indie The Swapper (2013), um astronauta explora um planeta alienígena usando uma tecnologia por meio da qual consegue criar clones de si mesmo, compartilhando uma só consciência. É uma aventura um tanto macabra, uma vez que você, como jogador, deve usar os clones para atravessar obstáculos, descartando-os constantemente. Agora o studio 11 Bit também está lançando um jogo que segue o mesmo conceito, The Alters (2025).

Pois bem, conceito semelhante é explorado também no livro Mickey7 (2022), de Edward Ashton, que por sua vez inspirou o filme Mickey 17 (2025). Em 2050, um político-empresário empreende uma viagem de quatro anos para colonizar outro planeta. Mickey, um zé ninguém que está fugindo de agiotas, resolve se candidatar para a tripulação, mas só consegue a vaga para uma função experimental como um "Expendable".

Uma nova tecnologia permite imprimir (literalmente imprimir em uma impressora gigante) clones de um corpo humano e implantar nele as memórias do humano copiado. Feito da reciclagem de dejetos, alimentos e até cadáveres (incluindo os corpos dos clones anteriores), cada clone é como um monstro de Frankenstein futurista.

Desta forma, Mickey se torna teoricamente imortal, de modo que ele pode realizar as atividades mais perigosas na viagem espacial, submeter-se a radiação, venenos, vírus, etc. Assim ele vai morrendo e sendo revivido diversas vezes em clones, até que chegamos ao protagonista da história, o décimo sétimo clone apelidado Mickey 17.

Obviamente essas clonagens levantam questões não só éticas, mas ontológicas. Quando Mickey é clonado, o novo corpo é de fato o antigo Mickey ou apenas uma nova pessoa submetida à lavagem cerebral de memórias implantadas que o fazem pensar que é a mesma pessoa? Creio que a resposta é óbvia.

Não é raro a ficção entender um clone como sendo a mesma pessoa, mas a verdade é que um clone não é muito diferente de um irmão gêmeo e, assim como gêmeos são indivíduos diferentes, também o são os clones. Isto fica ainda mais claro quando dois clones acabam existindo ao mesmo tempo, Mickey 17 e Mickey 18. Eles até apresentam traços diferentes de personalidade. O 17 é inseguro, covarde e subserviente, enquanto o 18 é assertivo, valente e com vontade firme.

O primeiro Mickey teve uma infância real, teve pais, experienciou a morte da mãe em um acidente que o traumatizou. Por sua vez, os clones não viveram de fato tais experiências. São corpos moldados em uma impressora e que tiveram as memórias do Mickey implantadas em seus cérebros. 

Mas aí entra a questão ontológica: o que de fato é o "real"? Um clone pode não ter vivido fisicamente uma experiência, mas a memória implantada profundamente em sua psiquê faz com que ele reviva tais momentos como se realmente fossem seu passado. Até mesmo os traumas de infância são compartilhados entre os clones. 

Mickey 17, por exemplo, tinha uma sensação de familiaridade com o cheiro do xampu de uma colega da tripulação simplesmente porque era o mesmo cheiro dos cabelos de sua mãe, ou melhor, da mãe do primeiro Mickey. Como essa sensação ficou marcada na memória do Mickey original, como um biografema, esta memória transferida para o clone também se tornou marcante nele.

Você pode ter um sonho muito marcante, algo que lhe proporciona sensações inesquecíveis. O sonho então se torna uma parte real da sua vida, mesmo que aquela experiência onírica não tenha sido vivenciada em seu corpo físico. Ora, até mesmo quando assistimos a um filme podemos ficar profundamente marcados pela história fictícia, ela pode nos despertar sentimentos que podem ser até mais intensos e catárticos do que os que já tenhamos experimentado na chamada vida real.

Desta forma, a experiência psíquica é real à sua maneira, uma experiência anímica, incorpórea. "Cogito, ergo sum". A existência da consciência é auto afirmativa. A consciência sabe que existe, não importa de que forma ela foi criada.

No filme, às vezes os dois Mickeys 17 e 18 são tratados como se fossem uma só pessoa em dois corpos. A namorada dele chega a pensar assim e só vê vantagens, afinal ela agora tem dois namorados em um só, ou um namorado em dois. Por outro lado, também há momentos em que eles sabem que são pessoas diferentes, o que na verdade é bem evidente. 

Um clone necessariamente é outra pessoa, não importa quão idêntico ele seja à matriz. Ora, se é feito um clone seu e você continua vivo, você sabe muito bem que seu clone não é você e ele também terá a mesma noção de independência. Cada um terá seus próprios pensamentos, suas vontades, podem reagir diferente às mesmas situações. O indivíduo é um fenômeno único que jamais se repete.

Aliás, se pensarmos mais ainda a respeito, veremos que até mesmo uma pessoa não é a mesma ao longo dos anos, das décadas. Você adulto é uma pessoa bem diferente da que foi na infância. Ano após ano estamos mudando. É o Paradoxo de Teseu. Como um barco que está continuamente trocando seus componentes, sempre estamos deixando de ser o que éramos, tornando-nos algo novo.

A coisa fica ainda mais complicada se pensarmos na possibilidade de uma mesma pessoa, um mesmo corpo, abrigar fragmentos diferentes, como na múltipla personalidade. Eis um enigma para teólogos cristãos: se uma pessoa tem dupla personalidade e uma delas se converte e se torna uma cristã fervorosa, mas a outra personalidade é rebelde, blasfema e rejeita a fé, o que acontecerá quando esta pessoa morrer? Ela vai para o céu ou para o inferno? Metade de sua personalidade vai ser salva e a outra metade condenada? São duas almas vivendo em um corpo? 

O filme na verdade nem envereda por tais reflexões, antes prefere explorar um tema mais político de xenofobia e colonização, pois os humanos invadem um planeta e pretendem exterminar as criaturas alienígenas nativas, o cabeça da expedição tem uma aparência e trejeitos que claramente pretendem ser uma caricatura de Trump. Eu diria que isto tudo torna o filme raso, pois esse tipo de crítica política se tornou um grande clichê ultimamente. 

De toda forma, a história abre espaço para uma reflexão mais profunda sobre a consciência, a identidade dos clones, a própria natureza do eu. E cá estou devaneando pelos labirintos anímicos. 

(09,06,2025)

Palavras-chave:

Bong Joon Ho, Edward Ashton, Frankenstein, Robert Pattinson, Warner

Ao contrário do que você pensa, os vírus são nossos amigos

Cute virus

Existe uma visão pessimista e catastrofista, misantrópica e até mesmo autodepreciativa de que somos uma praga neste planeta e a natureza nos odeia e quer nos eliminar. Para isto, ela usa de catástrofes naturais, ruge com a fúria dos vulcões e nos ataca com vírus. 

É bom lembrar que não somos um estranho no ninho, pois somos fruto da natureza tanto quanto qualquer outra criatura. Se somos o que somos, é porque a natureza nos fez assim. Além disto, os fenômenos supersticiosamente considerados um ataque da natureza à humanidade já aconteciam bilhões de anos antes de aparecermos aqui. Tsunamis, erupções vulcânicas massivas, terremotos, tudo isto tem sido uma rotina no planeta desde sempre.

Quanto aos vírus e demais microrganismos, é interessante constatar o seguinte: nós mesmos somos constituídos por uma quantidade imensa de vírus e bactérias que vivem em parceria com nossas células. Fazemos parte dos vírus e eles de nós. Mais que amigos, friends.

A lógica da natureza é a sobrevivência e perpetuação. Todo ser vivo busca isto e, caso não busque, seu destino é a aniquilação. Tudo o que hoje existe no ecossistema, existe porque buscou a sobrevivência e perpetuação através das eras. 

A princípio, uma maneira de um organismo alcançar este objetivo é competindo e superando seus competidores, mas isto não basta. Se a natureza fosse apenas competição, chegaria a um ponto em que restaria apenas um, apenas a espécie mais poderosa. Só que não funciona assim. 

O ecossistema é, como o nome indica, um sistema, o resultado de uma interação intrincada de suas peças, de cada ser vivo. Uma vez que o leão precisa do cervo para sobreviver, não é do interesse do leão aniquilar todos os cervos. Um certo equilíbrio é necessário. Com relação aos vírus, eles precisam de hospedeiros. Ora, se um hospedeiro morre, o vírus perde o seu habitat. Por isto vírus extremamente letais tendem a sair de circulação em um curto período de tempo, pois ao matar o hospedeiro ele perde a oportunidade de se perpetuar.

Sendo assim, os microrganismos que melhor se perpetuam no mundo não são os agressivos, os matadores implacáveis, mas aqueles que cooperam. A cooperação é mais importante na natureza que a competição. Em nosso corpo, há literalmente trilhões de vírus, bactérias e fungos probióticos (palavra que literalmente significa "favorável à vida"), micróbios que não querem nos matar, mas nos manter vivos e saudáveis. Curiosamente, existem até mesmo vírus que funcionam como parte de nosso sistema imunológico, são os chamados bacteriófagos. Eles destroem bactérias que não fazem parte da comunidade saudável do nosso corpo.

Mesmo um micróbio que em determinado período evolutivo se mostra nocivo contra o hospedeiro, com o passar das gerações pode ser incorporado à "família", por meio de uma negociação mútua. O hospedeiro vai desenvolvendo resistência, o micróbio vai se adaptando e se tornando menos agressivo, enfim acontece uma convivência pacífica.

A cooperação é a estratégia evolutiva final, o endgame da corrida evolutiva. Isto vale para nosso ecossistema, para o mundo microscópico dos vírus e provavelmente também no mundo macroscópico das civilizações alienígenas. Talvez lá fora, naquilo que achamos que seja uma imensa floresta sombria, as civilizações mais avançadas sejam aquelas que aprenderam a cooperar umas com as outras.

(16,03,2024)

Ranço

Às vezes nem mesmo temos um bom motivo.
Não é razão, é sentimento, quem sabe algo intuitivo.
É um sinal de alerta de que algo não está certo.
Infelizmente o que senti eu não posso dessentir.
O véu já foi rasgado, estou desencantado.
Agora é só memória a velha simpatia.

(09,03,2024)

Blasé

O riso não me é familiar.
A gargalhada é algo alienígena.
Um semblante sério, enigmático, apático
É onde minha alma se aninha.

(10,03,2024)

Antivírus

Você disparou o meu antivírus,
O meu alerta de pessoa ruim.
As suas intenções estão desmascaradas,
Os seus feitiços, eu não quero ouvi-los.

(14,03,2024)

Road House, uma franquia dedicada às brigas de bar

Patrick Swayze; Road House (1989)

Brigas de bar são um dos maiores tropes dos filmes de ação. Todo personagem casca-grossa que se preze em algum momento tem que se meter numa briga de bar. E se fizessem um filme inteiro como uma grande briga de bar? É o caso de Road House.

O filme original é de 1989 e foi estrelado pelo Patrick Swayze no papel de Dalton, um segurança de bar casca grossa e bonitão, além de ser gente boa. Ele começa a trabalhar no Double Deuce, um bar conhecido pelo excesso de confusões causadas por clientes. Dalton organiza a equipe de funcionários e os treina para lidar com os valentões. E assim ao longo do filme temos muitas brigas de bar, o que acaba se tornando cômico.

Road House é como chamam um bar ou taverna de beira de estrada. Em português o título ficou como Matador de Aluguel, o que foge completamente da proposta do filme e ainda ganha um ar bem genérico, infelizmente.

Lembrando que também existe outro filme que no Brasil recebeu o mesmo título de Matador de Aluguel, o Killer Joe (2012), estrelado pelo Matthew McConaughey e neste caso realmente se trata de um matador de aluguel.

Kelly Lynch; Road House (1989)

Patrick Swayze foi um dos grandes símbolos sexuais masculinos dos anos 80-90 e é claro que aproveitaram a presença dele no filme para incluir cenas de sexo e nudez, com muitos peitos, bundas, inclusive a bunda do próprio Swayze.

Não bastando os arruaceiros do bar, os problemas aumentam por causa de Brad Wesley, um empresário ganancioso que se torna o grande antagonista de Dalton, perseguindo-o com seus capangas e ameaçando as pessoas próximas, incluindo seu grande amigo Garret (Sam Elliott). Toda esta pressão desperta um lado violento em Dalton.

Sam Elliot; Road House (1989)

Falando no Garrett, ele curiosamente parece roubar a estrela do Dalton nas cenas em que aparece. O charme e a presença do Sam Elliott acabam superando o Patrick Swayze, mas de toda forma a química dos dois como amigos funciona e não parece haver nenhuma rivalidade.

O auge da sua violência é também a cena mais inverossímil do longa, quando Dalton arranca a traqueia de um capanga com a mão. Sim, ele fez isto muito antes do Stallone no Rambo 4. Mas enfim, no final, como é de se esperar, Dalton controla sua fúria, vence o vilão e seus capangas com ajuda dos amigos e fica com a donzela.

Em 2006 foi lançado Road House 2, dirigido por Scott Ziehl e com Johnathon Schaech no papel de Shane Tanner, filho de Dalton. De toda forma, nem assisti esse filme.

Road House foi produzido pelo studio indie Silver Pictures e distribuído pela United Artirts, uma companhia fundada em 1919 e que foi adquirida em 1981 pela MGM (Metro-Goldwyn-Mayer). Em 2022 a Amazon comprou a MGM e com ela um imenso catálogo de filmes e direitos autorais. Eis que em 2024 a Amazon produziu um remake de Road House, agora protagonizado pelo Jake Gyllenhaal.

Jake Gyllenhaal; Road House (2024)

O Dalton de Jake Gyllenhaal faz o mesmo estilo nice guy da versão original, porém mais sombrio, como uma espécie de psicopata que vive se segurando para não soltar seu lado violento. O bar agora se chama simplesmente Road House (em vez de Double Douce).

O plot é basicamente o mesmo. Ele vai trabalhar em um bar para lidar com valentões, até que compra briga com um empresário mafioso e seus capangas. E este Dalton é bem mais fictício e inverossímil que o original de 1989.

Já no começo ele leva uma facada no bucho e passa todo o resto da história com esse corte como se nada tivesse acontecido. Você deve desligar a suspensão de descrença e simplesmente curtir a pancadaria e a brucutuzice do protagonista. Dessa vez, porém, ele apenas quebrou a traqueia de um capanga, em vez de arrancar como o Patrick Swayze fez.

Jeff Healey; Road House (1989)

Há várias referências ao original, como no fato dele costurar as próprias feridas e namorar uma médica, etc, mas em termos de ambientação o filme de 1989 tinha mais vida, o bar era cheio de figurantes e ao longo do filme há várias apresentações de uma banda real, The Jeff Healey Band, cujo líder era cego.

A Dra. Elizabeth (Kelly Lynch) do filme original, virou Ellie (Daniela Melchior) no remake, já o Garrett, o amigo badass e estiloso do Dalton, interpretado por Sam Elliott com seu belo cabelão, simplesmente não teve uma versão no remake, o que fez falta.

Um detalhe em que o remake se sobressai é no antagonista interpretado pelo Conor McGregor. No filme original, havia um capanga chamado Jimmy (Marshall R. Teague) que tinha o papel do capanga mais forte, o braço direito do chefão. Dalton trava uma luta mortal contra ele, mas no fim das contas esse Jimmy é um personagem esquecível.

Conor McGregor; Road House (2024)

Já no remake temos uma nova versão do Jimmy chamada Knox. O Conor McGregor, com seu sotaque irlandês carregado, um olhar meio maluco e risada cínica, chamou atenção no filme e proporcionou umas boas cenas de luta.

Enfim, o remake não tem a mesma graça do original, mas de toda forma vale a pena como um filme de brucutu e pancadaria, um gênero que aos poucos está voltando a ter popularidade.

(30,03,2024)

Palavras-chave:

Amazon, Conor McGregor, Daniela Melchior, Doug Liman, Jake Gyllenhaal, Johnathon Schaech, Kelly Lynch, Marshall R. Teague, MGM, Patrick Swayze, Rowdy Herrington, Sam Elliott, Scott Ziehl

The Northman, a lenda nórdica que inspirou Hamlet

The Northman (2022)

The Northman (2022)

A tragédia grega, ou melhor, todo o folclore e mitologia grega, está repleta de dramas envolvendo famílias disfuncionais, relações problemáticas e até mesmo pervertidas entre parentes, sejam humanos, deuses ou semideuses. Esta temática sombria, porém, não é exclusiva dos gregos.

The Northman (2022) é baseado em uma antiga lenda nórdica do herói Amleth, relatada na obra do historiador Saxo Grammaticus. No filme, a narrativa se passa no século IX, quando o rei Aurvandill é morto por seu irmão bastardo Fjölnir, que ainda rouba sua esposa Gudrún. 

Amleth, filho do casal real, consegue fugir e passa anos sonhando com a vingança. Já adulto, forte e guerreiro, ele se deixa levar como escravo a fim de encontrar Fjölnir e dar início à sua vingança, numa série de ataques que vão semeando o terror e a superstição, até que enfim ocorre o embate final entre os dois. 

Só que nesta jornada Amleth tem seu destino e seus planos interferidos por eventos inesperados. Ele se apaixona pela escrava e feiticeira Olga, descobre que sua mãe não era uma mera donzela em perigo, mas a grande mente pervertida por trás de toda sua tragédia, e tem de escolher entre salvar Olga e sua futura prole ou seguir com seu plano de vingança até as últimas consequências.

Robert Eggers é um daqueles diretores que têm poucos filmes, mas que foi bem elogiado em todos. Ele tem seu estilo peculiar, um ar místico e sombrio, com forças malignas pagãs pairando no ar, como se vê em The Witch (2015) e mesmo em The Lighthouse (2019).

O próprio Eggers comentou sobre seu interesse por paganismo em entrevista: 

"Witch mythology, folklore, occult, I’m perhaps more interested in that stuff than film itself. Before even writing this movie, I'd spend most of my time reading that stuff, anyway. I’ve been very interested in reading about the past and witches ever since I was a kid, even though I didn’t know nearly as much as I do now. In most of the work I’ve done in the past and screenplays I wrote that no one wanted to make, they all sort of aligned within that. I wanted to make an archetypal New England horror story, and that was always the goal."¹

O animismo permeia a visão de mundo mística dos personagens, com rituais que invocam espíritos de animais e a sensação de forças sobrenaturais em todo o ambiente. Em uma visão, Amleth toma conhecimento de uma espada lendária que é guardada pelo esqueleto de seu primeiro dono. Ao encontrar o esqueleto com a espada, Amleth trava uma batalha mental, psíquica, com aquele cadáver, até enfim se apoderar da espada.

The Northman é a obra mais mais visceral e bruta de Eggers, com cenas de batalhas sangrentas e cabeças rolando. Há um certo ar teatral na performance dos atores, uma espécie de homenagem ao teatro shakespeareano, uma vez que a lenda de Amleth foi a inspiração para a obra Hamlet, de Shakespeare. 

É comum os diretores trabalharem repetidas vezes com os mesmos atores que se tornam seus queridinhos. Aqui temos o retorno da Anya Taylor-Joy, com quem Eggers trabalhou em The Witch, e do Willem Dafoe, que atuou em The Lighthouse.

Alexander Skarsgård; The Northman (2022)

(05,04,2024)

Notas:


Palavras-chave:

Alexander Skarsgård, Anya Taylor-Joy, Claes Bang, Ethan Hawke, Focus Features, Nicole Kidman, Robert Eggers, Saxo Grammaticus, Shakespeare, Universal Pictures, Willem Dafoe