Neollogia
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Mickey 17 e o paradoxo da consciência

Mockey 17 (2025)

No joguinho indie The Swapper (2013), um astronauta explora um planeta alienígena usando uma tecnologia por meio da qual consegue criar clones de si mesmo, compartilhando uma só consciência. É uma aventura um tanto macabra, uma vez que você, como jogador, deve usar os clones para atravessar obstáculos, descartando-os constantemente. Agora o studio 11 Bit também está lançando um jogo que segue o mesmo conceito, The Alters (2025).

Pois bem, conceito semelhante é explorado também no livro Mickey7 (2022), de Edward Ashton, que por sua vez inspirou o filme Mickey 17 (2025). Em 2050, um político-empresário empreende uma viagem de quatro anos para colonizar outro planeta. Mickey, um zé ninguém que está fugindo de agiotas, resolve se candidatar para a tripulação, mas só consegue a vaga para uma função experimental como um "Expendable".

Uma nova tecnologia permite imprimir (literalmente imprimir em uma impressora gigante) clones de um corpo humano e implantar nele as memórias do humano copiado. Feito da reciclagem de dejetos, alimentos e até cadáveres (incluindo os corpos dos clones anteriores), cada clone é como um monstro de Frankenstein futurista.

Desta forma, Mickey se torna teoricamente imortal, de modo que ele pode realizar as atividades mais perigosas na viagem espacial, submeter-se a radiação, venenos, vírus, etc. Assim ele vai morrendo e sendo revivido diversas vezes em clones, até que chegamos ao protagonista da história, o décimo sétimo clone apelidado Mickey 17.

Obviamente essas clonagens levantam questões não só éticas, mas ontológicas. Quando Mickey é clonado, o novo corpo é de fato o antigo Mickey ou apenas uma nova pessoa submetida à lavagem cerebral de memórias implantadas que o fazem pensar que é a mesma pessoa? Creio que a resposta é óbvia.

Não é raro a ficção entender um clone como sendo a mesma pessoa, mas a verdade é que um clone não é muito diferente de um irmão gêmeo e, assim como gêmeos são indivíduos diferentes, também o são os clones. Isto fica ainda mais claro quando dois clones acabam existindo ao mesmo tempo, Mickey 17 e Mickey 18. Eles até apresentam traços diferentes de personalidade. O 17 é inseguro, covarde e subserviente, enquanto o 18 é assertivo, valente e com vontade firme.

O primeiro Mickey teve uma infância real, teve pais, experienciou a morte da mãe em um acidente que o traumatizou. Por sua vez, os clones não viveram de fato tais experiências. São corpos moldados em uma impressora e que tiveram as memórias do Mickey implantadas em seus cérebros. 

Mas aí entra a questão ontológica: o que de fato é o "real"? Um clone pode não ter vivido fisicamente uma experiência, mas a memória implantada profundamente em sua psiquê faz com que ele reviva tais momentos como se realmente fossem seu passado. Até mesmo os traumas de infância são compartilhados entre os clones. 

Mickey 17, por exemplo, tinha uma sensação de familiaridade com o cheiro do xampu de uma colega da tripulação simplesmente porque era o mesmo cheiro dos cabelos de sua mãe, ou melhor, da mãe do primeiro Mickey. Como essa sensação ficou marcada na memória do Mickey original, como um biografema, esta memória transferida para o clone também se tornou marcante nele.

Você pode ter um sonho muito marcante, algo que lhe proporciona sensações inesquecíveis. O sonho então se torna uma parte real da sua vida, mesmo que aquela experiência onírica não tenha sido vivenciada em seu corpo físico. Ora, até mesmo quando assistimos a um filme podemos ficar profundamente marcados pela história fictícia, ela pode nos despertar sentimentos que podem ser até mais intensos e catárticos do que os que já tenhamos experimentado na chamada vida real.

Desta forma, a experiência psíquica é real à sua maneira, uma experiência anímica, incorpórea. "Cogito, ergo sum". A existência da consciência é auto afirmativa. A consciência sabe que existe, não importa de que forma ela foi criada.

No filme, às vezes os dois Mickeys 17 e 18 são tratados como se fossem uma só pessoa em dois corpos. A namorada dele chega a pensar assim e só vê vantagens, afinal ela agora tem dois namorados em um só, ou um namorado em dois. Por outro lado, também há momentos em que eles sabem que são pessoas diferentes, o que na verdade é bem evidente. 

Um clone necessariamente é outra pessoa, não importa quão idêntico ele seja à matriz. Ora, se é feito um clone seu e você continua vivo, você sabe muito bem que seu clone não é você e ele também terá a mesma noção de independência. Cada um terá seus próprios pensamentos, suas vontades, podem reagir diferente às mesmas situações. O indivíduo é um fenômeno único que jamais se repete.

Aliás, se pensarmos mais ainda a respeito, veremos que até mesmo uma pessoa não é a mesma ao longo dos anos, das décadas. Você adulto é uma pessoa bem diferente da que foi na infância. Ano após ano estamos mudando. É o Paradoxo de Teseu. Como um barco que está continuamente trocando seus componentes, sempre estamos deixando de ser o que éramos, tornando-nos algo novo.

A coisa fica ainda mais complicada se pensarmos na possibilidade de uma mesma pessoa, um mesmo corpo, abrigar fragmentos diferentes, como na múltipla personalidade. Eis um enigma para teólogos cristãos: se uma pessoa tem dupla personalidade e uma delas se converte e se torna uma cristã fervorosa, mas a outra personalidade é rebelde, blasfema e rejeita a fé, o que acontecerá quando esta pessoa morrer? Ela vai para o céu ou para o inferno? Metade de sua personalidade vai ser salva e a outra metade condenada? São duas almas vivendo em um corpo? 

O filme na verdade nem envereda por tais reflexões, antes prefere explorar um tema mais político de xenofobia e colonização, pois os humanos invadem um planeta e pretendem exterminar as criaturas alienígenas nativas, o cabeça da expedição tem uma aparência e trejeitos que claramente pretendem ser uma caricatura de Trump. Eu diria que isto tudo torna o filme raso, pois esse tipo de crítica política se tornou um grande clichê ultimamente. 

De toda forma, a história abre espaço para uma reflexão mais profunda sobre a consciência, a identidade dos clones, a própria natureza do eu. E cá estou devaneando pelos labirintos anímicos. 

(09,06,2025)

Palavras-chave:

Bong Joon Ho, Edward Ashton, Frankenstein, Robert Pattinson, Warner

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