Neollogia
Cogitações e quejandas quimeras 🧙‍♂️
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Sobre fanatismo

Os religiosos mais fanáticos costumam ser os recém-convertidos. O velho religioso, que já está nesta jornada há anos, já alcançou um certo estágio de tédio, de mesmice, ou, olhando por um aspecto positivo, o devoto se tornou mais maduro e realista, sabendo conciliar sua fé e a vivência no mundo. Ele já fez o ajuste fino da sua fé e alcançou a serenidade.

O novato tem um sentimento de revolução, de certa superioridade arrogante em relação aos infiéis e até mesmo aos outros fiéis mais experientes que não mostram o mesmo fervor. Encantado por ter descoberto a verdade, fecha a mente para qualquer questionamento. Enxerga erros em tudo e todos, negligenciando a autocrítica. Um pequeno fariseu.

Obviamente também existe fanatismo nos fiéis mais vividos, que acumularam anos de crença. Em alguns casos, trata-se de pessoas mentalmente fossilizadas, que permanecem as mesmas por anos e anos, sem jamais aprender algo novo. 

Em outros casos, são pessoas que obtêm vantagens de seu status religioso, pois ocupam funções de liderança, são seguidos e venerados por outros fiéis, exercem influência, poder, são recompensados de diversas maneiras. Estes provavelmente não têm mais a visão ingênua e utópica dos recém-convertidos. Talvez até cultivem no íntimo um desencanto com a crença, mas externam o fanatismo pelas vantagens que ele proporciona.

Isto não acontece apenas em religiões, mas também em outros sistemas parecidos, como a política e a ideologia. Podemos trocar o jovem fiel pelo jovem militante político. Ambos assemelham-se no fervor, na crença firme em seus dogmas e na agressividade com que atua em sua cruzada para salvar o mundo, converter novos adeptos e julgar hereges.

É certo que há beleza e bondade na religião, mesmo na política e na ideologia. Crença e fanatismo não são sinônimos. O fanatismo é a perversão da crença. Há aqueles que creem de uma forma inofensiva e benevolente. Entre estes misturam-se os fanáticos, como o joio brotando na plantação de trigo.

(22,05,2023)

Solitude

A maioria das pessoas associa a solidão a algo negativo, algo que se deve evitar, que se deve temer, como um castigo. A solidão é triste, a solidão causa angústia e vazio.

Bom, não para mim ou para outros como eu que veem na solidão um alívio, um descanso, a paz. Existe esta comunidade invisível que une todos os amantes da solidão. A irônica comunhão dos eremitas, separados, porém juntos na visão de mundo que partilham.

Fiquemos em silêncio, cada um na sua caverna. À noite olharemos as estrelas e assim de longe veremos os infinitos mundos vagando na imensidão. Lá longe, há bilhões de anos-luz, estão outros de nossos irmãos, outros eremitas que também desfrutam da arte de olhar as estrelas em completo silêncio e solitude.

(29,05,2023)

A régua da ofensa

Nas sociedades extremamente bárbaras e nas extremamente civilizadas a régua da ofensa se encontra. Em uma sociedade bárbara, um bruto pode facilmente se ofender com um olhar torto, uma palavra mal explicada, um ato falho ou uma opinião discordante. Em consequência, ele pode te matar por se ofender com estas tolices. 

Em uma sociedade muito civilizada, igualmente, mínimos gestos e palavras casuais podem ser interpretados como ofensas graves que, embora não levem à morte, podem ser punidas com uma severidade exagerada. 

A civilização naturalmente ruma para o desenvolvimento da tolerância, da aceitação de opiniões discordantes, da sátira e do sarcasmo. A sociedade estabelece este pacto tácito de mútua aceitação e da liberdade de expressão, obviamente assumindo a responsabilidade por excessos. 

Todavia, mesmo atitudes saudáveis podem se tornar doentias quando levadas ao extremo. Uma pessoa asseada é ótimo, mas uma pessoa com uma mania patológica de limpeza torna-se doente. Assim o excesso de civilidade pode se tornar uma patologia que ironicamente leva as pessoas de volta à barbárie, quando as coisas mais banais tornam-se ofensivas e provocam uma retaliação desproporcional.

(25,07,2023)

A evolução da etiqueta na internet

Normalmente, se você está em um ambiente público conversando com um grupo de pessoas, inclusive pessoas estranhas que você nunca viu antes, existe um certo nível de etiqueta. Um estranho não costuma se aproximar de você com xingamentos e críticas, os conhecidos podem te xingar em tom de brincadeira, mas também evitam ser muito críticos e falar tudo o que pensam. 

Afinal, todos sabem que, se você se aproxima dos outros com uma atitude crítica, você se torna uma companhia desagradável e que todos vão evitar. Somente loucos, delinquentes e desequilibrados se comportam assim na vida real.

Na internet, por sua vez, este tipo de postura hostil é bem comum e muitas pessoas simplesmente abandonam as normas de etiqueta que usam na vida real, tornando-se mais críticas, xingando gratuitamente outras pessoas, fazendo comentários inapropriados, praticando bullying, sendo inconvenientes.

Isto acontece obviamente por causa de uma camada de anonimidade que a internet oferece. Não que você seja de fato um anônimo. Quem comete crimes na internet pode ser punido, porque sempre deixa rastros. No entanto, mesmo em redes sociais, onde você pode se apresentar com seu nome e colocar sua foto no perfil, o fato de não se sentir fisicamente presente naquele ambiente faz com que você perca a noção de pessoalidade. Ao falar com outras pessoas, você não tem o mesmo nível de empatia que teria se as visse pessoalmente, em carne e osso, pois ali, na internet, são apenas uma fotinha num perfil e às vezes nem é a foto real da pessoa.

Esta sensação de anonimidade e impessoalidade deverá mudar no metaverso, o real metaverso. Um dia, você vai se mover na internet como se fosse um segundo mundo físico, e sentirá a presença das pessoas, elas vão parecer mais reais, mais sólidas. Este tipo de sensação de presença real deverá ser suficiente para fazer com que muitas pessoas naturalmente passem a adotar na internet a mesma etiqueta que adotam no mundo físico, de modo que somente loucos, delinquentes e desequilibrados vão continuar se comportando como brutos mal educados no mundo virtual.

(14,09,2023)

A era de ouro do animismo

Flammarion engraving

O erotismo e a paixão são um campo onde o animismo floresce. Hoje em dia mais ainda com a internet. Há algumas décadas, quando criança, eu era apaixonado pela Penélope Charmosa, uma personagem de desenho animado. Eu ficava me imaginando como um herói que a salvava dos bandidos. Era um animismo infantil, atribuir a um desenho uma vida própria, uma substância tal que eu podia nutrir sentimentos por ela. 

Hoje em dia vejo que mesmo adultos experimentam um pouco disto ao gostar de personagens de anime, games, até mesmo personagens sem uma aparência física visível, como aqueles dos livros. Mulheres talvez tenham ainda mais facilidade que homens para se apaixonar por personagens de livros e não à toa consomem romances mais que homens. Obviamente qualquer pessoa dita normal sabe fazer uma distinção entre estes sentimentos platônicos por seres fictícios e algo real, mas tais sentimentos existem e se constituem numa manifestação de animismo.

No erotismo existe toda uma cultura de produção de material erótico baseado em desenhos, animes, jogos, etc. A chamada "rule 34". Isto é puro animismo.

Mas não só isto. Na verdade, até mesmo representações de humanos reais são animistas. Uma escultura em mármore baseada em um modelo humano real se torna um ser em si e daí nasceu o pigmalionismo. Há quem tenha sentimentos pela Mona Lisa, que hoje é apenas a representação de uma mulher real que já nem mais existe. 

Ora, o que são fotos e vídeos senão também representações de pessoas reais? Quando as pessoas assistem a um vídeo erótico ou veem fotos nuas de pessoas e se excitam com isto, até mesmo ao ponto do orgasmo, estão tendo uma relação anímica, já que a pessoa real, de carne e osso, não está ali participando deste momento erótico. 

Casais apaixonados que ficam de daydreaming um com o outro, imaginando a pessoa amada e fantasiando histórias, estão se relacionando no momento do devaneio não com a pessoa real, mas com a sua representação mental e anímica. 

Já parou para pensar nisto? Quando você sonha, pensa, imagina a pessoa com quem você está se relacionando, naquele momento você está nutrindo sentimentos por uma construção da sua mente e não pela pessoa concreta que não está fisicamente presente. De fato, todo relacionamento tem um aspecto anímico, uma vez que você não direciona seus sentimentos simplesmente a uma pessoa, mas também à projeção imaginária que você faz dela.

Sentimentos religiosos são por natureza anímicos, já que você projeta sentimentos em ídolos, talismãs, santos, anjos, espíritos, divindades, seres que geralmente não se mostram fisicamente presentes. Tudo isto nos faz perceber que a dimensão física é apenas um pequeno aspecto da realidade vislumbrada pela nossa mente. Vivemos em um misto de mundo físico e mental, sendo o mundo mental muito mais amplo.

E eis que agora a tecnologia está levando a humanidade para uma espécie de renascença do animismo, com a inteligência artificial. Algumas pessoas vão resistir inicialmente, rejeitando a ideia de humanos terem algum tipo de sentimento direcionado a máquinas, mas com o tempo isto se tornará cada vez mais comum. Ora, quando você se irrita com a Alexa ou ri de um comportamento dela, já está desenvolvendo um laço anímico com esta inteligência artificial.

Até que ponto irá se aprofundar a relação entre humanos e máquinas? Um dia haverá crianças que serão criadas por robôs e nutrirão por eles sentimentos filiais. Haverá idosos solitários que terão a valiosa companhia de um cuidador robótico e muitos vão ter por estes robôs o sentimento que se tem por um grande amigo. No mundo erótico, então, as pessoas terão experiências eróticas envolvendo máquinas com mais frequência do que as relações humano com humano.

Em algum momento, talvez até existam robôs se convertendo e praticando alguma religião. Quando isto acontecer, teremos um curioso fechamento de ciclo, pois um ser anímico, a inteligência artificial, será igualmente praticante do animismo.  

E assim toda a jornada da humanidade, que no tempo das cavernas começou com sentimentos anímicos voltados para criaturas desenhadas nas rochas e bonecos de palha, ruma para uma espécie de animismo cósmico, com a compreensão de que o universo inteiro, além de sua camada puramente física, é também um mundo mental experimentado pela consciência. 

Nós, seres conscientes, somos a consciência do universo, e vivemos neste limiar entre a matéria e o mundo mental. Ao criar um mundo virtual, chegamos ao ponto em que ambos os reinos se misturam e se confundem. Este mundo irá se expandir e se mesclar à própria consciência individual e coletiva. A era de ouro do animismo.  

(16,10,2023)

De Equilibrium a John Wick, a arte do gun kata

Gun kata

A primeira vez que ouvi falar em gun kata foi há mais de dez anos quando assisti Equilibrium (2002). Nessa época eu ainda alugava filmes em locadoras físicas e algo que eu adorava (e hoje não existe mais no streaming, já que geralmente você aluga apenas o filme em si) era o material extra, principalmente o making of. Pois bem, foi numa destas entrevistas que vi o diretor de Equilibrium explicando sobre esta arte marcial criada especialmente para aquele filme.

Basicamente, o gun kata é uma arte marcial baseada em probabilidades estatísticas, algo que combina com o mundo lógico e puramente racional de Equilibrium. O objetivo é realizar movimentos e disparos em direções bem específicas, visando ao mesmo tempo acertar os alvos nos spots estatisticamente mais prováveis e também desviar-se da trajetória dos disparos inimigos. O resultado é uma espécie de dança bem estilosa e badass.


Conforme vemos ao longo do filme, o gun kata não se resume a tiros, mas também combate a curta distância e até técnicas de desarmamento. Daí temos a icônica cena em que Preston e DuPont, ambos treinados na arte, ficam numa longa sequência de mútua tentativa de desarmamento.

Christian Bale; Equilibrium (2002)

Na definição do próprio DuPont:

"Each fluid position representing a maximum kill zone, inflicting maximum damage on the maximum number of opponents while keeping the defender clear of the statistically traditional trajectories of return fire. By the rote mastery of this art, your firing efficiency will rise by no less than 120%. The difference of a 63% increase to lethal proficiency makes the master of the gun katas an adversary not to be taken lightly."

Armas de fogo e tiroteios são populares no cinema desde o tempo dos filmes de Velho Oeste, os chamados bang bang. Neste caso, os personagens pareciam descolados e fodões por causa da agilidade com que sacavam as armas da cintura e a mira fabulosa. Suas poses eram mais estáticas e rígidas e não havia firulas. Muitas vezes a cena era lenta, como quando usavam espingardas para um tiro à distância e levavam certo tempo mirando calmamente, mas tudo isso dava também um ar descolado de um cara que sabe o que está fazendo. O negócio era ser bom de tiro e pronto.

Clint Eastwood; The Good, the Bad and the Ugly (1966)

Nos filmes de kung fu foi só uma questão de tempo até armas de fogo também se tornarem parte da luta marcial. Então em Matrix (1999) esse conceito foi esteticamente melhorado com recursos de câmera e computação, criando aquelas cenas do Neo e Trinity literalmente subindo pelas paredes enquanto dão tiros e recarregam suas armas e trocam de armas e desviam de balas em câmera lenta (ato que ficou conhecido como "bullet time" e desde então foi copiado à exaustão em filmes e jogos).

Equilibrium refinou a ideia e transformou essa prática, outrora fruto apenas da habilidade marcial dos personagens, em uma arte que é uma espécie de ciência, fruto de cálculos estatísticos, resultando numa performance muito elegante de tiro e coreografia. O Christian Bale fez isso com maestria.

Kingsman (2014)

Em 2014 tivemos uma das melhores cenas envolvendo essa técnica que foi a já clássica "cena da igreja em Kingsman", em que Colin Firth, do alto da elegância do seu terno inglês, massacrou uma turba ensandecida usando uma pistola tanto para dar tiros como para espancar com coronhadas e até perfurou um cara com as peças desmontadas da arma. Isso é que é tirar o proveito máximo de uma pistola.

John Wick (2014)

E então chegamos em John Wick. John Wick é o gun kata ambulante. Todas as cenas de luta (e são muitas) estão recheadas de uma elaborada coreografia envolvendo judô, karatê e manipulação de armas de fogo ou qualquer coisa que na mão de John Wick vira uma arma (até um lápis!). 

(15,05,2019; 08,08,2025)

Palavras-chave:

Christian Bale, Clint Eastwood, Colin Firth, Dimension Films, Keanu Reeves, Kurt Wimmer