Neollogia
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Ascensão e queda do Joker

Joker (2019)

Joker (2019)

O Coringa é um dos mais antigos vilões dos quadrinhos e talvez até o mais importante e popular, afinal ele é o adversário eterno do Batman. Coringa e Batman são a perfeita dualidade: o caos versus a ordem, o crime versus a justiça, o deboche versus a seriedade. O Coringa é colorido, o Batman é preto e cinza.

Não à toa, ao longo das décadas, surgiram tantas versões e adaptações deste personagem icônico para diversas mídias como a TV, o cinema e até os jogos eletrônicos. Há Coringas de desenho animado, de séries, de filmes e cada qual tem sua própria personalidade, seu estilo.

Se compararmos cada versão, vemos que não existe um Coringa definitivo. O do Cesar Romero, na série galhofa dos anos 60, era um bandido palhaço que só queria infernizar a vida do Batman (e comer a tia dele, na sua versão alternativa da Feira da Fruta); o do Heath Ledger era um anarquista niilista; o do Jared Leto era um gangster que ostentava riqueza e foi o primeiro Coringa do cinema a ter um par romântico.

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

E quanto a esse mais recente Coringa interpretado pelo Joaquin Phoenix? Ele é, talvez, o menos parecido com o personagem, mas ao mesmo tempo tem sua origem inspirada em uma das versões mais respeitadas que é a de Alan Moore na Piada Mortal.

Tradicionalmente, o Coringa é um vilão de origem misteriosa. Não se sabe ao certo de onde ele vem ou mesmo quais suas reais intenções e motivações. Esse enigma faz parte da essência caótica do personagem. Alan Moore, porém, ousou criar uma história de origem: ele era um pacato homem comum, casado, comediante fracassado de stand-up, que é levado pelas circunstâncias a se tornar um criminoso e enlouquece após mergulhar acidentalmente em substâncias químicas, o que também explica o tom pálido de sua pele. 

Joker (2019)
Um diário bem perturbado.

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

Na versão do filme de Todd Phillips, Joker (2019), o protagonista, chamado Arthur Fleck, é também um comediante fracassado, mas a referência à versão de Alan Moore para por aí. O que vem em seguida é uma espécie de homenagem a personagens desajustados clássicos do cinema, como o Travis de Taxi Driver (1976) e o Rupert de O Rei da Comédia (1982).

O Joker de Joaquin Phoenix é uma colcha de retalhos, um resumo, o suprassumo da mistura de fracassados, criminosos, doentes mentais e desajustados sociais. Diferente da maioria das versões, este Coringa tem uma origem em pobreza e humilhações. É um desprezado da sociedade, um filho sem pai, abusado pela mãe, com problemas psicológicos, mal nutrido, depressivo e solitário. "All I have are negative thoughts", ele confessa para sua psiquiatra. "Tudo o que tenho são pensamentos negativos".

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

Arthur Fleck é um coitado, um cara sofrido e que causa pena. Até sua risada é angustiante, pois é na verdade um tique nervoso. Já no começo vemos sua fragilidade ao ser espancado por crianças, depois por uns mauricinhos, quando finalmente revida usando uma arma e aí começa a gênese do Coringa.

O curioso é que este novo Coringa exerce uma liderança invisível. Não é como aquele do Heath Ledger que tinha capangas e um plano bem elaborado para semear o caos em Gotham, inclusive manipulando figuras influentes como o Harvey Dent. Ele disse que não tinha um plano e era como um cachorro correndo atrás de um caminhão, mas isso era uma farsa. Aquele Coringa do filme do Christopher Nolan tinha sim um grande plano e realizou tudo com maestria.

Joaquin Phoenix in Joker (2019)
Nasce o Coringa, aclamado pela multidão.

O Arthur Fleck, por outro lado, era alguém sem qualquer poder ou influência e tudo o que aconteceu com ele e por causa dele foi acidental. Foi por acidente que ele matou os caras no metrô e, sem que ele tivesse qualquer controle, esse evento desencadeou uma revolta na cidade. Quando ele estava sendo levado para a prisão, os amotinados nas ruas o libertaram e naquele momento ele se consagrou como o Joker. 

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

Então, no fim das contas, existe um Coringa neste filme que não é o Arthur Fleck. É uma entidade, uma egrégora, um sentimento coletivo de revolta, insatisfação e caos. Esta egrégora se apoderou da multidão em Gotham e elegeu Arthur Fleck como seu rosto, mas poderia ter sido qualquer outra pessoa. 

O Coringa é uma força transcendente que sempre estará ali em Gotham, sempre assombrando a cidade e criando o Batman como seu antagonista. Ele é um espírito, uma divindade zombeteira, como um Loki ou Momo. Joker é uma ideia.

Joaquin Phoenix in Joker (2019)

O Coringa sempre esteve no imaginário popular como o palhaço aterrorizante, uma entidade brincalhona que quer apenas semear o caos. Por outro lado, o Coringa do Joaquin Phoenix parece mais humano, mais terreno. Ele é um tipo de pessoa que não é tão raro de se encontrar nas massas: pobre, doente física e mentalmente, sofrido, abandonado pelo mundo.

A revolta de Arthur Fleck é a revolta do cidadão comum que, ou tem uma vida parecida com a dele, ou tem pessoas próximas que vivem assim, depressivos, decadentes, desesperados com a vida. Como o William Foster em Um Dia de Fúria (1993), Arthur chega ao limite e tem um surto. Este surto acaba sendo libertador, abrindo as portas para uma personalidade sombria que vivia oculta nele e que tem mais força de vontade do que o apático Arthur.

No Brasil, o Joker de 2019 acabou popularizando o termo "coringar", referindo-se a uma pessoa que vivencia um rompimento com o conformismo em que vivia, metendo o louco, chutando o balde, caindo na risada com a tragicomédia humana, etc.

O sucesso do filme rendeu uma bilheteria de 1 bilhão e várias premiações, incluindo o Oscar de melhor ator para o Joaquin Phoenix. Com 11 indicações ao Oscar, Joker também superou The Dark Knight (2008), que havia recebido 8 indicações, tornando-se o filme baseado em história em quadrinhos que mais recebeu indicações ao Oscar. Foi um fenômeno cultural e cinematográfico.

Mas aí o Todd Phillips cometeu um erro que persegue criadores: ele não aceitou a vida própria que sua criação desenvolveu. Incomodado que militantes políticos de direita adotaram o Joker como um símbolo e também incomodado com a admiração que o público teve pelo personagem, pois seu objetivo não era construir um ídolo, o diretor iconoclasticamente resolveu desconstruir o personagem. Mais ainda, ele o destruiu. Ele descoringou o Coringa.

Joker Folie à Deux (2024)

Joker Folie à Deux (2024)

Assim veio Joker: Folie à Deux (2024), uma sequência que trouxe também uma versão da Arlequina, interpretada pela Lady Gaga. Para subverter o gênero, adotou um estilo musical e o filme acabou sendo bem diferente do que os fãs esperavam. Foi um balde de água fria.

Arthur é destruído de todas as formas. Encarcerado, constantemente humilhado na prisão, mentalmente dominado por medicação, emasculado, literalmente abusado pelos guardas. Ele experimenta um momento de alegria ao conhecer a Arlequina, a única pessoa que demonstrou afeto por ele em toda sua vida (com exceção do "afeto" disfuncional e pervertido de sua mãe), mas quando ele resolve abandonar a persona do Joker, a Arlequina perde totalmente o interesse por ele.

Joaquin Phoenix in Joker Folie à Deux (2024)

Joaquin Phoenix in Joker Folie à Deux (2024)
Pelo menos a fotografia do filme é legal.

Pois é, a Arlequina é basicamente uma mulher guiada pela hibristofilia, aquele interesse patológico por bandidos, por desajustados, assassinos, etc. Arthur, depois de estar tão quebrado, acabou resgatando sua humanidade, desenvolveu arrependimento pelos crimes e o desejo de superar a persona do Joker e isto graças à descoberta do amor, mas ironicamente, aquela que o fez descobrir o amor o abandonou quando ele começou a se tornar mais humano. A Arlequina é o grande monstro neste filme.

E para garantir que este Joker não teria mais uma sequência, para tirar de vez o personagem das mãos do público, o Todd Phillips fez questão de matar o personagem no final. O público também não deixou barato. Joker 2 teve uma bilheteria de 206 milhões, um grande prejuízo, levando em conta que os gastos com produção, marketing e distribuição devem girar em torno de 400 milhões.

Joker and Compadre Washington

(22,03,2020; 19,12,2024)

Palavras-chave:

Alan Moore, Christopher Nolan, Compadre Washington, DC Comics, Heath Ledger, Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Todd Phillips, Warner

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