Neollogia
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O peso da culpa em The Whale

Brendan Fraser in The Whale (2022)

The Whale foi originalmente uma peça de teatro lançada em 2012, de autoria de Samuel D. Hunter. Em 2022 a história foi adaptada para o cinema por Darren Aronofsky, com Brendan Fraser no papel de Charlie, um homem à beira da morte devido à obesidade mórbida.

Acompanho Aronofsky há quase 15 anos e já vi quase tudo dele. O que percebi é que ele costuma misturar dois temas: religião e um forte drama pessoal na vida dos personagens. Seus protagonistas são quebrados, trágicos. Requiem for a Dream (2000) e Black Swan (2010) que o digam. 

The Fountain (2006) é meu preferido e é o menos trágico e mais místico, uma verdadeira saga cósmica de um protagonista que atravessa os séculos e a galáxia na busca sagrada pela fonte da vida a ponto de transcender a própria humanidade.

Noah (2014) é literalmente a história bíblica de Noé e o dilúvio, mas recriada pela mente do Aronofsky, não sendo uma narrativa exatamente fiel ao que está na Bíblia. Mother! (2017), por sua vez, é uma alegoria que resume praticamente toda a Bíblia de capa a capa, do Gênesis ao Apocalipse, pois acompanhamos um casal que é como uma representação simbólica de Deus e a Terra, desde a criação até a destruição causada pela humanidade.

Já em The Whale (2022), a religião vem como algo negativo ou pelo menos problemático. Não necessariamente toda religião, mas a seita específica que afetou a vida do protagonista Charlie.

Charlie era um professor de literatura, casado e com uma filha, mas tardiamente se descobriu gay ao apaixonar-se por um aluno. Esta relação com o rapaz acabou destruindo o casamento de Charlie e foi ainda mais trágica, pois o aluno era membro de uma seita cristã e vivia atormentado pelo conflito existencial devido ao fato de ser gay, o que acabou levando-o ao suicídio.

Com a morte trágica do amante e a separação da esposa, Charlie mergulhou numa crise, desenvolveu compulsão alimentar, mergulhando numa espiral de decadência, pois, ao se tornar obeso mórbido, ficou isolado dentro de casa, contando com a companhia apenas de uma amiga enfermeira que insistia em vão que ele fosse ao hospital.

Brendan Fraser in The Whale (2022)

Acontece que Charlie estava intencionalmente se matando, literalmente comendo até morrer, pois esta foi a forma inconsciente que encontrou para se punir pela culpa. Mais do que todos os outros filmes do Aronofsky, este é essencialmente sobre a culpa, o peso da culpa que no caso de Charlie ganha forma física em seu próprio corpo.

Em nenhum momento o nome "Baleia" é citado como uma referência ao corpo de Charlie, embora obviamente este título do filme nos leve a fazer a relação. Acontece que Charlie, como professor de literatura, tem uma fixação pelo livro Moby Dick (fixação que será explicada no final do filme). Se Moby Dick, dentre outras coisas, é um livro sobre a busca obcecada por algo, no caso de Charlie a sua busca tem sido pelo perdão da filha. 

Se existem outros filmes cujo protagonista é um obeso mórbido, eu desconheço. O fato é que The Whale vai ficar marcado como a grande referência neste tema. Acompanhamos a vida difícil de um homem com mais de 200 quilos. As coisas mais simples como andar e respirar são um fardo. Em certa cena ele deixa cair uma chave no chão e é simplesmente impossível para ele se ajoelhar e apanhar a chave.

O pior porém é a culpa, principalmente por causa de sua filha Ellie (Sadie Sink), que cresceu se sentindo abandonada pelo pai, e com razão. Então tudo o que ele deseja é o perdão da filha. Ao longo de todo este drama, o Brendan Fraser viveu o personagem com maestria dentro de sua impressionante maquiagem que deu a ele um convincente corpo obeso. O Oscar do ator e da maquiagem foi mais do que merecido.

Ellie parecia desinteressada por tudo, não gostava da escola, o que frustrava Charlie que é um professor. Então ele se depara com um texto que ela escreveu no caderno: 

"This apartment smells. 
This notebook is retarded. 
I hate everyone".

Sadie Sink in The Whale (2022)

À primeira vista, parece mais uma demonstração de como ela é tão desinteressada que só se deu ao trabalho de escrever três frases curtas de pura reclamação. Então ele começa a contar nos dedos e cai na gargalhada. Acontece que ele notou que as três frases, ou melhor, os três versos, seguem corretamente a métrica de um haikai clássico, a saber, 5-7-5 sílabas poéticas. 

Sílabas poéticas não são a mesma coisa que as sílabas das palavras. Elas são baseadas na tonicidade e por isto são contadas de maneira diferente. Para compor o haikai com o correto padrão, Ellie devia entender este conceito de sílaba poética e saber aplicá-lo. Logo, neste simples ato de compor um haikai, Ellie mostrou ser mais letrada e interessada do que parece.

Apesar de toda a tragédia e do martírio da Culpa, Charlie ainda busca acreditar na humanidade e seu otimismo é confirmado quando ele percebe que por trás da capa de revolta e indiferença que sua filha demonstrava, ela também se importava com as pessoas, o que leva Charlie a comentar com a enfermeira: "Do you ever get the feeling that people are incapable of not caring?". As pessoas são incapazes de não se importar. Isto é da natureza humana (com exceção talvez de casos patológicos, como psicopatas).

(08,12,2024)

Palavras-chave:

A24, Brendan Fraser, Darren Aronofsky, Moby Dick, Sadie Sink, Samuel D. Hunter

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