Jim Jarmusch é um diretor diferentão, considerado um ícone do cinema indie e que já está nessa carreira desde a década de 80. A produção dele é vasta. Década após década ele nunca parou de escrever e dirigir seus filmes. Não posso, todavia, falar muito sobre seu estilo, porque de seus mais de trinta filmes eu só assisti dois: Only Lovers Left Alive (2013) e The Dead Don't Die (2019).
De toda forma, creio que estes dois filmes são uma boa introdução à cinegrafia do Jarmusch, pois são os mais "populares" dele, já que contam com rostos conhecidos como Tilda Swinton, Tom Hiddleston, Adam Driver, Bill Murray e até a Selena Gomez.
Estes longas abrangem gêneros bem diferentes. Only Lovers Left Alive é uma mistura de romance com terror e drama, uma espécie de dark fantasy; enquanto The Dead Don't Die é pura chacota, uma comédia que debocha do gênero de zumbis e até quebra a quarta parede, pois os protagonistas claramente sabem que estão em uma história e comentam sobre o roteiro. Este é um filme de zumbis, aquele, de vampiros.
A experiência com Only Lovers Left Alive é bem diferente de The Dead Don't Die. Nem parece que é o mesmo diretor e roteirista. Este sim é um filme memorável e um exemplo do que Jim Jarmusch é capaz. Tem uma ambientação sempre noturna, o que dá um certo ar noir e contemplativo.
A história envolve dois vampiros, Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton). Eles são cultos, carregando o acúmulo de séculos de vivência que lhes dá uma perspectiva especial sobre o mundo e a humanidade, que pejorativamente chamam de zumbis.
Há de fato uma certa arrogância neles, mas também emanam um carisma empregado pelos atores. A Tilda passa esse ar de estranheza, de beleza incomum, enquanto o Tom parece um astro do rock, com um jeitão soturno, gótico, reservado. Ele é um artista, compositor, introvertido; ela é mais racional, poliglota, extrovertida. Formam um casal encantador vivendo um romance de séculos.
Estes dois protagonistas são tão interessantes que o filme nem sequer precisa de uma trama. Há obviamente uma história, eles se envolvem em problemas causados pela irmã da Eve, a eterna vampira adolescente Ava (Mia Wasikowska), mas o que importa mesmo é acompanharmos o casal de vampiros, seus diálogos triviais, seus gostos por arte, literatura, cultura.
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O vampiro por trás de Shakespeare. |
Inclusive o grande amigo deles, o dramaturgo quinhentista Christopher Marlowe (John Hurt) é ninguém menos que o verdadeiro autor das obras de Shakespeare. Sim, existe de fato esta teoria de que Shakespeare teve um ghost writer que se manteve anônimo, enquanto ele levava todo o crédito pela obra magistral. No filme isto é aproveitado para encaixar um vampiro como o autor original.
A mitologia vampírica é desenvolvida de uma maneira "soft". Em raros momentos vemos que eles podem ter reflexos muito rápidos, mas não são superfortes como em outras obras de ficção (em certa cena, o casal precisa carregar um corpo enrolado em um tapete e eles fazem tanto esforço quanto humanos normais fariam), quando privados de sangue, ficam bastante fracos e sonolentos e podem até adoecer caso bebam sangue contaminado. Um detalhe curioso é que, ao beber sangue, mesmo uma pequena taça, são tomados por uma espécie de barato, um torpor temporário.
Outro detalhe curioso é quando Adam encomenda uma bala customizada, feita de madeira em vez de chumbo. Ele faz questão de especificar até o tipo de árvore, visando uma madeira bastante dura. É uma versão modernizada da clássica estaca de madeira. Enquanto lobisomens morrem com bala de prata, para vampiros a bala é de madeira.
Também vemos que eles mantêm o ritual de só entrar em uma casa se convidados, mas não significa que seja impossível, pois a Ava entra na casa sem convite. É mais uma questão de etiqueta e uma pitada de superstição.
Eles adotam a ética de não mais fazer vítimas humanas. Isto ficou nos séculos passados. Agora vivem de comprar sangue de funcionários em bancos de sangue. Não é exatamente algo ético, já que estão desviando sangue de doadores, mas é o mal menor.
Há diversas referências culturais que podemos ver no cenário, nas fotos na parede da casa do Adam, nos livros que Eva lê, nos diálogos. Há referências, entre tantas, a Leonardo Fibonacci, o Grande Gatsby, Fausto, o clássico do cinema O Gabinete do Dr. Caligari, Don Quixote, Kafka, Pitágoras, Galileu, Copérnico, Newton, Tesla, Darwin, Einstein e até conversam sobre astronomia e uma estrela a 50 anos luz que é feita de puro diamante (sim, esta estrela existe). O título do filme é homenagem à novela de mesmo nome escrita por Dave Wallis em 1964.
Enfim, este filme é uma verdadeira pérola e um exemplar bem peculiar do gênero de vampiros.
Bom, pouco há para se falar de The Dead Don't Die, pois o filme é um porre. Esta é a verdade. Há um clima de marasmo na história e no comportamento dos personagens. É como se todos os atores fossem instruídos a se comportar da mesma maneira, com um jeito fleumático, uma fala preguiçosa.
Como em certos momentos há uma "crítica social foda", falando que os zumbis representam as pessoas e suas vidas vazias e voltadas ao consumismo, na certa a performance morgada dos atores deve fazer parte deste plano do diretor.
Mas convenhamos, a impressão é que o filme é um saco e pode ser um caso de uma mente criativa que ocasionalmente produz algo mais desleixado. Algo interessante é o fato dos zumbis deste filme serem um retorno às origens. Não são fruto de algum vírus, mas criaturas místicas, ghouls que despertam dos túmulos em uma noite fatídica.
O pior é que a comédia não funciona. Nada tem graça. As piadas são bobas, o humor negro é insosso. Esse filme é um grande velório do gênero de zumbis, aquele tipo de velório apático e desinteressante. Nem o Bill Murray consegue ser engraçado.
O roteiro tentou ter algum ar de profundidade ao citar Moby Dick, chamando os humanos de "nameless miseries of the numberless mortals", mas a profundidade para por aí.
(31,01,2025)
Palavras-chave:
Adam Driver, Bill Murray, Christopher Marlowe, Dave Wallis, Herman Melville, Jim Jarmusch, John Hurt, Mia Wasikowska, Moby Dick, Selena Gomez, Tilda Swinton, Tom Hiddleston, William Shakespeare
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